Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Transparência opaca

Transparência. Todo mundo é a favor em público, mesmo os que roubam descaradamente. Transparência se tornou uma daquelas palavras-muleta, como foi ‘cidadania’ no começo do milênio. Nossa semântica engessada joga tanto peso sobre um substantivo que ele se arrasta moroso por um momento da cultura, obrigado a significar um bem universal.

Quem há de ser contra a transparência nas contas públicas, nas votações do Congresso, no contrato com a operadora de celular? Mas há um outro tipo de transparência que não é fruto do progresso cívico. É a que nos coloca vivendo num aquário por causa da tecnologia, da presença da mídia digital, e de hábitos na mídia social que fizeram um rombo no ozônio da privacidade.

Na última semana, a ex-braço direito do magnata Rupert Murdoch na Inglaterra, Rebekah Brooks, hoje ré do julgamento pelo grampo telefônico do defunto tabloide News of the World, mal conteve o choro ao prestar depoimento no tribunal. Qualificou sua vida pessoal de um acidente de automóvel. “De Lady Macbeth a Bridget Jones”, bradou sarcástica a manchete de um jornal. A ex-poderosa editora que emprestava seus cavalos ao Primeiro-Ministro David Cameron explicava o conteúdo de seus e-mails, incluídos como peças da acusação, especialmente os que se referem ao seu caso com outro réu, o ex-porta-voz de Cameron, Andy Coulson. Se as lágrimas da Macbeth/Bridget eram de crocodilo, não sei e não há expectativa de transparência que possa ser satisfeita. Meu interesse é sobre o esforço que ela fez para preencher as lacunas deixadas pelos e-mails pessoais, escritos para ser lidos num contexto de intimidade. Embora despreze Rebekah Brooks e o que ela representa na promiscuidade do jornalismo com o poder, reservo meu ceticismo em doses iguais para seus inimigos com relação aos e-mails românticos e o que exatamente eles revelam. Apliquei o teste a mim mesma. Abri alguns escritos pessoais de outra era geológica e soltei um grito mental horrorizado com a ideia de que eles poderiam, em fragmentos, ser usados contra mim.

No aquário

O fim de semana tinha começado promissor. Acordei cedo e fui me entregar a dois prazeres: um conto de George Saunders e um cappuccino. Mas o café estava lotado e me vi colada à mesa de dois homens, um jovem, o outro de meia idade. Tudo bem, pensei, a linguagem deliciosa do estilista Saunders vai me transportar para o Norte do Estado de Nova York e abafar as vozes. Mas os fragmentos da conversa ao lado invadiram o conto. “I did a dirty swearing” (tomei posse em cerimônia informal); “deixa que eu falo com o Kennedy”; “Fulano (autor famoso, a omissão é minha) tem um pouco de mendácia nele.”

A esta altura, apenas fingia que continuava a ler. Percebi, por reconhecer a voz do homem mais velho, que testemunhava a conversa de um novo subsecretário do gabinete de Barack Obama, uma figura conhecida, com um jovem que há de ser o filho de um empresário já morto, um dos inovadores mais importantes do último meio século. Há tempos, nutria antipatia pelo interlocutor mais velho. A conversa só aumentou a impressão de que o homem, cujo salário agora ajudo a pagar como contribuinte, ganhou um paraquedas de ouro para descer em Washington, já que sua encarnação profissional até 2013 estava seriamente ameaçada.

Se trabalhasse para a coluna de fofocas do New York Post, com os escrúpulos conhecidos do tabloide, teria emplacado meia página de revelações pessoais. E não teria contribuído em nada para futuras biografias, no festival de name-dropping (menção de nomes importantes) que tinha acabado de ouvir. Respeito a privacidade dos interlocutores que não me convidaram para sua conversa. As migalhas de fatos deixadas na mesa do café puderam, no máximo, satisfazer meu voyeurismo.

A transparência da vida no aquário não deve ser confundida com a verdade.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York