Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Stuart Hall e os estudos de mídia

Stuart Hall, primeiro editor da New Left Review, ex-diretor do renomado Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham e, à época, professor da Open University, fez a conferencia de abertura da 3ª International Television Studies Conference (ITSC), no auditório do Institute of Education da University of London, em julho de 1988.

Estava entre as dezenas de acadêmicos de mais de vinte países que viram e ouviram aquele imigrante jamaicano, ex-bolsista em Oxford, que havia sido responsável – ao lado de Richard Hoggart, Raymond Williams e E. P. Thompson – pelo surgimento do amplo e diversificado campo que veio a se consolidar como “estudos culturais” (EC).

Depois de haver “descoberto” os EC e Stuart Hall nas aulas de James W. Carey e Lawrence Grossberg, ainda estudante de pós-graduação na década de 70, aquela era a primeira vez que tinha o privilégio de um contato direto com ele. Já havia me tornado, então, um dedicado aprendiz dos EC.

Na perspectiva da eventual construção de uma matriz teórica para os estudos culturais latino-americanos, havia tentado fazer um contraponto entre o pensamento de Paulo Freire e os EC nos Estados Unidos e na Inglaterra [cf. Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire, 2ª. edição revista, 2011]. Depois disso, na década de 80, lecionei “Comunicação e Estudos Culturais” no mestrado em Comunicação da Universidade de Brasília, tema que veio a se tornar uma das “linhas de pesquisa” do programa em 1986 [por um curto período, é verdade]. Meu primeiro projeto de pós-doutorado foi uma tentativa de mapear os temas, metodologias e resultados das teses defendidas no Institute of Communications Research da University of Illinois na perspectiva dos EC. E ainda naquela época, tentamos articular a criação de um doutorado multidisciplinar em “Estudos Culturais Contemporâneos” na UnB, tendo como “modelo” o Centro de Birmingham.

Reuniões com representantes das pós-graduações em psicologia, história, filosofia, antropologia, linguística, sociologia, ciência política e comunicação foram realizadas (1989/1990), mas o projeto não progrediu. Com o passar dos anos, a matriz teórica fundadora dos EC viria a ser parte constitutiva de minha produção intelectual.

Legado intelectual

Stuart Hall faleceu aos 82 anos, no último dia 10 de fevereiro, após um longo período de tratamento da saúde. Ao completar 80 anos, dependente da diálise, concedeu entrevista ao The Guardian e revelou desencanto, ao contrário das esperanças que havia depositado na diversidade cultural e no multiculturalismo como possibilidades reais de transformação social: “estou mais pessimista politicamente hoje do que estive em 30 anos”.

Os EC deslocaram as questões relacionadas à comunicação e à mídia dos paradigmas dominantes nos países intelectualmente hegemônicos – tanto o behaviorismo positivista e empirista, quanto o economicismo do marxismo ortodoxo – para a complexa dinâmica da cultura contemporânea, palco de construção das representações sociais e da disputa pelo poder.

Stuart Hall teve um papel decisivo nesse “deslocamento” embora, a partir da década de 90, abandone esse subcampo para se dedicar às questões de raça e etnia, no que ele próprio chamou de “uma virada decisiva no meu trabalho intelectual e teórico”. É sintomático que Hall tenha vindo ao Brasil para participar de um congresso de literatura comparada (Bahia, 2000) e que a coletânea de seus textos, publicada em português, organizada por Liv Sovik com sua participação direta, tenha o título de Da Diáspora: identidades e mediações culturais (Editora UFMG/UNESCO, 1ª. edição 2003).

Seu enorme legado intelectual deve ser celebrado embora, especificamente nos estudos de comunicação e mídia, não tenha exercido a influência que deve e merece no Brasil. Esse registro – simplificado e seletivo – abarca apenas alguns aspectos dessa contribuição específica, respeitadas as circunstâncias do tempo histórico em que aconteceram.

Hall e os estudos de mídia

Apesar da enorme diferença entre os processos históricos de consolidação dos sistemas de mídia, tanto impressos quanto eletrônicos, na Inglaterra e no Brasil, algumas questões teóricas, lá e cá, eram e continuam sendo semelhantes. Destaco duas nas quais Stuart Hall exerceu influência decisiva: (1) o papel da audiência (receptores) na “leitura” das mensagens da mídia (emissor) e (2) a comunicação como campo autônomo de conhecimento.

(1) Codificação/decodificação

A primeira versão do texto com esse título [Enconding and Decoding in TV Discourse] foi escrita no início da década de 70 e publicada originalmente na Media Series do CCCS como Stencilled Occasional Paper nº 7 (1973). Hall argumentava que existiam pelo menos três posições hipotéticas a partir das quais a decodificação de uma mensagem (discurso) televisiva poderia ser construída pela audiência: a posição hegemônica dominante; uma versão (código) “negociada” e uma versão (código) de “oposição”. Vale dizer, embora a maioria da audiência decodifique a mensagem no código referencial operado pela mídia, outra parte “negocia” o significado (aceitando-o no todo ou em parte) e outra rejeita o significado dominante.

Alguns anos mais tarde (1989), Hall explicou em entrevista que seu texto tinha sido escrito para questionar, dentre outros, os modelos empíricos positivistas tradicionais de análise de conteúdo e as pesquisas sobre “efeitos” da comunicação. Afirmou ele:

Codificação/decodificação é “contra uma noção particular de conteúdo, entendido como um sentido ou uma mensagem pré-formada e fixa, que pode ser analisada em termos de transmissão do emissor para o receptor. (…) A mensagem é uma estrutura complexa de significados que não é tão simples como se pensa. A recepção não é algo aberto e perfeitamente transparente, que acontece na outra ponta da cadeia de comunicação. E a cadeia comunicativa não opera de forma unilinear” [texto e entrevista in “Da Diáspora”].

Creio que “Codificação/decodificação” só veio a ser publicado no Brasil na coletânea de 2003, embora tenha repercutido e circulado, em inglês, entre alguns estudiosos brasileiros ainda no final dos anos 70, início dos 80.

Vale relembrar qual era, então, o contexto brasileiro. Desde 1964 vivíamos uma ditadura, com a voz pública de oposição censurada e com a consolidação oligopolística de um conglomerado de mídia (jornal, revistas, rádio e televisão) que fazia a sustentação ideológica do governo militar, as Organizações Globo. O texto de Hall se contrapunha diretamente a uma “teoria da recepção”, apoiada na “análise do discurso”, que diluía inteiramente o poder da mídia com o argumento de que cada um construía individualmente sua própria significação para as mensagens – a famosa “polissemia das mensagens”. A proposta teórica de Hall possibilitava não só que a crítica aos modelos teóricos que assumiam a passividade generalizada “dos receptores” fosse feita, como, ao mesmo tempo e, mais importante àquela época, permitia o argumento de que, sim, havia uma leitura dominante (“preferred reading”) construída na e pela mídia. Essa leitura dominante conferia à mídia um imenso poder.

(2) Inocência sociológica

Em 1986, a International Communication Association (ICA), realizou seu encontro anual em Chicago sob o tema “Diálogo entre paradigmas: conexões” e convidou cinco personalidades para fazer as falas iniciais em torno das quais o debate se desenvolveria. Stuart Hall apresentou o trabalho “Ideology and Communication Theory”, mais tarde publicado em Dervin, Grossberg, O’Keefe e Wartella (orgs.), Rethinking Communications (SAGE/I.C.A. vol. 1, 1989). Desconheço que exista tradução deste texto para o português.

Hall parte da constatação de que há uma crise do paradigma dominante behaviorista-empirista da pesquisa e da teoria em comunicação e identifica alguns de seus indicadores. Aquele sob o qual ele mais se detém é o que chama de “esforço teórico para identificar processos, instituições e efeitos que podem de alguma maneira ser atribuídos à ‘comunicação’ como tal, separados das estruturas social, econômica, política e cultural nas quais os sistemas modernos de comunicação estão inextrincavelmente ligados (embedded)”.

O argumento é longo. Hall afirma que não nega a especificidade do campo da comunicação que exige conceituação, teorização e trabalho empírico, mas que há toda diferença entre essa tarefa e o desenvolvimento da teoria dentro de um campo “regional”, isto é, “o estudo dos efeitos reais e da estruturação interna de um domínio concreto de praticas onde, não obstante, a natureza de suas articulações com outras práticas no conjunto das relações sociais ou da formação social como um todo, não podem ser consideradas como dados”.

E continua: “a comunicação moderna não pode ser conceituada como externa ao campo das estruturas e práticas sociais porque ela é, de forma crescente, constitutiva internamente delas. Hoje as instituições e relações de comunicação definem e constroem o social; elas ajudam a constituir o político; elas mediatizam as relações econômicas produtivas; elas se transformaram em ‘uma força material’ nos modernos sistemas industriais; elas definem o tecnológico; elas dominam o cultural”. Conclui Hall que “o campo [da comunicação], no seu paradigma dominante, tem permanecido em grande parte teimosamente inocente sociologicamente”.

As implicações de tal posição são enormes. Enquanto no Brasil, boa parte dos estudiosos de comunicação permanece, até os nossos dias, em busca de uma inalcançável “pureza epistemológica”, há quase trinta anos, bem antes da revolução digital e da convergência de mídias, Hall argumentava sobre a inevitabilidade de a articulação teórica acontecer no campo regional “das estruturas e práticas sociais”. Não é sem razão que, infelizmente, a produção intelectual no campo da comunicação fica muito aquém do esperado quando se trata da reflexão concreta sobre as complexas questões que o setor de comunicações enfrenta, historicamente, no Brasil.

Para ler sobre Hall e EC

Termino esse breve registro indicando para o eventual leitor(a) que se interesse por se iniciar pelos caminhos plurais dos EC e pelo pensamento de Stuart Hall, além da coletânea já mencionada (Da Diáspora), outros poucos textos disponíveis no Brasil: Richard Johnson et alii; O que é, afinal, estudos culturais?, Autêntica, 2000; CCCS (org.), Da Ideologia, Zahar, 1980 (inclui um ensaio de Hall e outro que assina coletivamente); Stuart Hall, “O papel dos programas culturais na televisão britânica” in Edgar Morin et alii, Cultura e Comunicação de Massa, FGV, 1972; Stuart Hall, “A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo” in Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, 1997; e Stuart Hall, Identidades Culturais na pós-modernidade, DP&A, 1997. Estão também disponíveis alguns dos livros de Raymond Williams em português.

Na vertente latino-americana dos EC há textos disponíveis de Nestor Canclini, Jesus Martin Barbero e Guillermo Orozco, dentre outros.

Em inglês, a bibliografia é imensa. Existem várias coletâneas de textos produzidos no CCCS e sobre os EC. Minha preferida, resultado de um megacongresso realizado na University of Illinois em 1990, é Grossberg, Nelson e Treichler (orgs.) Cultural Studies, Routledge, 1992. Vale a pena conferir também dois livros mais recentes: Paul Gilroy, Lawrence Grossberg e Angela McRobbie (orgs.), Without Guarantees: In Honour of Stuart Hall (Verso, 2000) e Lawrence Grossberg, Cultural Studies in the Future Tense (Duke Press, 2010).

Leia também

Stuart Hall, o pensador do multiculturalismo – Severino Francisco

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Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador/autor, com Juarez Guimarães, de Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio (Paulus, 2013), entre outros livros