Ao longo da história, os momentos de instabilidade política e econômica sempre serviram para revelar o estado moral de uma nação. O diagnóstico põe à prova a solidez das instituições, a eficácia do Estado de direito e a validade de seu sistema ideológico, assim como serve muito bem para testar o caráter de seus líderes e de seus cidadãos. Isso aconteceu em 1789, na França; em 1919, na Rússia; em 1989, na União Soviética; em 1991, na Alemanha Oriental; e assim se repetiu em 2010 e 2011, nos países da chamada Primavera Árabe.
Sabemos muito bem o que aconteceu. Todos esses movimentos deixaram cicatrizes na pele e na história de todos os povos. A Revolução Francesa disseminou e incutiu os ideais da liberdade por todos os cantos do mundo. A queda no Muro de Berlim demonstrou quanto tempo um povo consegue aguentar um regime de opressão. E a Revolução russa (tanto quanto a Primavera Árabe) nos ensinou que a instalação e a manutenção de um regime pela força acabam sempre preparando uma nova revolução.
O Brasil vive, desde junho de 2013, um momento histórico peculiar. Milhares de brasileiros têm invadido ruas, praças ou shoppings para demonstrar, segundo a mídia, sua insatisfação com o estado de coisas no país. Este, entretanto, é apenas o sintoma de um fenômeno maior. O fato é que, vista de um modo geral, a realidade parece ter entrado em transe. É a tarifa do ônibus, a prisão dos mensaleiros, um helicóptero de cocaína, o pastor homofóbico, os black blocs, o menino exterminador (matou a família e foi à aula), o genocídio na boate, os rolezinhos, o cinegrafista morto por um rojão e o quilo do tomate a R$ 9,00.
A voz dos extremismos
Estes fatos foram, naturalmente, insuflados por acontecimentos sociais, culturais e econômicos e, ao mesmo tempo, seguidos por eventos tecnológicos, políticos e morais. Veja-se que, numa perspectiva um pouco maior, assistimos nos últimos tempos ao mensalão do DEM no DF, ao mensalão dos tucanos em Minas (assim como ao mensalão do PT), o julgamento do mensalão no STF, o escândalo do WikiLeaks, as revelações do espião Edward Snowden, o poder das redes sociais, a morte de Hugo Chávez e de Mandela, o aquecimento global, a crise imobiliária nos EUA, o casamento gay, a desaceleração da China, a Comissão da Verdade etc.
O mundo parece pronto para mudar de pele. O pêndulo geopolítico oscila entre os dois polos do planeta. O Oriente Médio permanece uma bomba-relógio. A Síria produz apenas armas, mortes e refugiados. A máquina chinesa começa a engasgar e a lutar contra a corrupção interna. Espanha, Grécia e Irlanda batem recordes de desemprego. Barcos com africanos desesperados afundam todos os dias ao sul da Itália. Pepe Mujica vira ícone mundial.
O sinal mais evidente desta época parece ser a disputa pela hegemonia do discurso ideológico e o concomitante renascimento da voz dos extremismos no Brasil e no mundo. Não se trata ao menos de uma espécie de “endurecimento, sem perder a ternura”. Obama passou a falar grosso e ameaça governar por decreto. Putin manda no leste do planeta. Cooptou a Ucrânia e passou a posar para os fotógrafos no velho estilo populista. Como a China não fala nada e a Europa está quebrada, a luta pela hegemonia do discurso ideológico volta a transitar entre o populismo extremista na América e na Ásia.
Conhecer a história para não a repetir
Ao mesmo tempo, os radicais de direita tomaram conta da agenda social no Brasil. O pastor Feliciano permaneceu dois anos à frente da comissão mais importante da Câmara sem que ninguém tenha conseguido tirar ele do cargo. Bolsonaro, o reacionário, não assumiu a comissão por detalhe. A Rede Globo usou a morte do cinegrafista para tentar aplicar um golpe de Estado branco contra o povo. A corporação decretou que, a partir de agora, qualquer manifestação popular é sempre um ato de vandalismo. E tentou colocar a culpa na conta da esquerda. A jornalista Sheherazade defendeu a mobilização popular contra a violência diante da omissão do Estado. A reação da imprensa contra ela foi igualmente irracional. E o povo avançou contra criminosos nas ruas do Brasil, surrando, amarrando e calando pessoas.
Nitidamente, algo de novo está para nascer e talvez este seja o momento de verificarmos como o fascismo populista nasceu e renasceu em vários pontos do planeta, assim como os extremismos de direita (e de esquerda) afetaram a vida de milhões de pessoas ao longo da história. Afinal, já dizia o ditado: quem não conhece a história, corre o risco de repeti-la.
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Leandro Marshall é jornalista, professor e escritor, Brasília, DF