A primeira sensação é de espanto. Não é possível que seja aqui. O prédio parece mais a sede modesta de uma hacienda californiana do começo do século 20 ou uma casa de veraneio.
O tamanho é minúsculo – só 170 metros quadrados. Não é possível que seja aqui o que a revista US News and World Report classificou como a melhor escola pública de jornalismo dos Estados Unidos, o que é endossado por praticamente todos os rankings que avaliam esses cursos. O segredo dessa performance é uma penca de obviedades.
Primeira lição da escola de jornalismo de Berkeley, cidade vizinha de San Francisco, no norte da Califórnia: o prédio não tem a menor importância nos projetos de ensino de alto nível. O maior investimento da J-School, a maneira como são chamadas as escolas de jornalismo nos Estados Unidos, é em professores. É uma escola com foco: o curso de jornalismo é oferecido só como programa de mestrado com duração de dois anos. Só aceita 50 alunos. Com 16 professores no corpo docente permanente, os cursos têm um quê de aula particular. Cada um deles cuida, em média, de três alunos. É praticamente impossível para os alunos trabalhar e estudar, como ocorre frequentemente em mestrados no Brasil: o curso exige dedicação integral.
Professores experientes
Os professores não são acadêmicos que nunca escreveram uma reportagem nem editaram um telejornal na vida, como é comum no Brasil, mas jornalistas experientes com passagens pelos melhores jornais e programas jornalísticos de TV dos Estados Unidos.
Não é um prêmio de consolação para jornalistas aposentados. Os professores de Berkeley continuam a se dedicar ao jornalismo. Escrevem no New York Times, na New Yorker ou fazem documentários para a rede pública de televisão PBS (Public Broadcasting System). Até o diretor da escola de jornalismo, Edward Wasserman, um especialista em ética jornalística e propriedade dos meios de comunicação, é colunista de opinião do Miami Herald.
O símbolo dessa opção pelos grandes jornalistas é Lowell Bergman, uma das lendas do jornalismo investigativo nos Estados Unidos. Seria como se um Caco Barcellos que investigasse corrupção internacional e lavagem de dinheiro resolvesse dar aulas na Universidade de São Paulo (USP) ou na Pontifícia Universidade Católica (PUC).
Lowell já trabalhou na Rolling Stone (nos anos 1970), no New York Times, mas foi na CBS que ganhou fama pelos seus documentários incômodos sobre as mentiras da indústria do cigarro, os caminhos tortuosos do dinheiro de Saddam Hussein ou sobre o dinheiro sujo que a Siemens usava para pagar propina ao redor do mundo. Ganhou um Pulitzer por reportagens que fez com o New York Times e agora migrou para a TV pública – é um dos repórteres do Frontline, um dos melhores programas jornalísticos da TV americana.
A sua investigação mais famosa foi levada ao ar em 1995 pelo 60 Minutes, sobre os segredos da indústria do cigarro. Quatro anos depois, as revelações do programa nortearam o filme O Informante (The Insider), de Michael Mann, que recebeu sete indicações ao Oscar. Al Pacino interpreta Lowell, o produtor do 60 Minutes que consegue arrancar um pacote de documentos-bomba sobre cigarros de um cientista da Philip Morris.
Lowell não é a única estrela da escola. Também ensinam em Berkeley Michael Polan, autor do best-seller O Dilema do Onívoro (Intrínseca, 2008) e colaborador do New York Times; Jon Else, produtor de documentários sobre a bomba atômica e a história do rock, que ganhou um prêmio especial do Sundance Festival; e Lydia Chavez, autora de um livro altamente elogiado sobre Cuba nos dias de hoje (Capitalism, God, and a Good Cigar: Cuba Enters the Twenty-first Century).
Com professores como esses, é mais ou menos óbvio que o curso tenha um viés prático que nunca vi no Brasil. É prático, mas não se trata de um curso meramente técnico. Ensina-se técnica, mas com um objetivo: decifrar o mundo.
Berkeley foi um dos principais centros de contestação durante os anos 1960, o que na Califórnia ganhou as cores locais do psicodelismo (ou seja, drogas como LSD) e contracultura (espírito hippie misturado com Escola de Frankfurt e, sobretudo, Herbert Marcuse). O levante estudantil que ocorreu ali é o que de mais próximo os Estados Unidos tiveram do Maio de 1968 francês.
Apenas jornalismo
Um restinho desse espírito sobrevive até hoje na J-School. Um dos sinais está no tipo de curso que Berkeley oferece. “Jornalismo, exclusivamente. Não relações públicas, não propaganda, nem estratégias de comunicação”, anuncia o site da escola, como se fosse um deboche com os cursos que tentam se aproximar cada vez mais do mercado para tentar sobreviver.
São oferecidas 12 especialidades, como jornalismo de negócios, documentário, jornalismo investigativo e nova mídia (assim mesmo, no singular). A vizinhança com o Vale do Silício, onde é criada hoje a tecnologia de ponta do mundo digital, faz com que a escola tenha uma carga de novas tecnologias, mas sem perder de vista a função crítica do jornalismo.
O jornalismo ensinado ali privilegia o interesse público e a ideia de que, sem o controle de jornais independentes, políticos e corporações podem produzir monstruosidades.
Essa talvez seja a principal diferença entre os cursos de Berkeley e da Columbia University, em Nova York, outra escola de altíssimo nível. Numa simplificação rápida e rasteira, dá para dizer que Columbia privilegia o debate enquanto Berkeley enfatiza a investigação e a intervenção. Num exemplo prático, enquanto a Columbia discute a liberdade de imprensa na América Latina, Berkeley parece mais preocupada em disseminar modelos de jornalismo sem fins lucrativos, tal qual o praticado pela ProPublica nos Estados Unidos.
Seria tolo, no entanto, imaginar que são escolas rivais. Elas têm até um projeto conjunto, chamado 21 News, sobre o futuro do jornalismo, desenvolvido inicialmente com Harvard, Northwestern University e University of Southern California.
A prática também guia os métodos de ensino: aprende-se fazendo em Berkeley. Todo aluno precisa entregar uma grande reportagem, um documentário ou um projeto de site ao final do curso. O destino de muitos desses trabalhos de conclusão de curso é a publicação ou a transmissão na TV; também não é incomum que sejam premiados.
Os projetos são em geral bastante ambiciosos. Há alunos que se dedicam a dissecar conflitos no Oriente Médio, problemas ambientais na Índia e até a corrupção no Brasil.
Em 2010, Lowell Bergman me mandou um e-mail perguntando se eu teria tempo para receber e ajudar um aluno seu que estava interessado no caminho que o dinheiro sujo da Alstom percorria até chegar à conta de servidores públicos e políticos do PSDB.
No ano anterior, eu havia estado no seminário de jornalismo investigativo que Lowell promove todo ano em Berkeley e contara a ele algumas descobertas que eu havia feito sobre a Alstom, contas na Suíça e agrado a políticos.
O interesse de Lowell sobre as estripulias da Alstom no Brasil tinha uma razão prática – a empresa francesa era a principal interessada no projeto de trem-bala que estava em discussão na Califórnia. O Brasil, dizia Lowell, talvez seja um bom laboratório para aprender como a Alstom corrompe o poder público – o que a empresa nega, enfaticamente.
Vertentes do ensino
Foi por esse caminho tortuoso que o estudante de Berkeley Bryan Gibel veio ao Brasil em 2010 e, sem a necessidade de publicar três ou quatro textos por semana, tirou a sorte grande. Foi o único jornalista a entrevistar o engenheiro Everton Rheinheimer, o ex-diretor da Siemens que se tornaria célebre quando a multinacional alemã reconheceu num acordo assinado em maio de 2013 com o governo brasileiro que ela e outras 18 empresas faziam parte de um cartel que atuava no Metrô e na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), ambas companhias públicas do governo paulista.
O engenheiro foi quem escreveu o documento revelado em novembro do ano passado, segundo o qual o principal secretário do governador Geraldo Alckmin (PSDB), Edson Aparecido, chefe da Casa Civil, e o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP) recebiam propina de empresas de consultoria que faziam o trabalho sujo para Siemens, Alstom e outras empresas do cartel de trens.
Gibel não extraiu nada de mais da conversa que teve com Rheinheimer, mas conseguiu entrevistá-lo. “Depois que me apresentei, ele disse que eu era o primeiro repórter com quem falava sobre Alstom e Siemens, e que me daria a entrevista com a condição de manter o anonimato, porque temia por sua segurança”, escreveu Gibel no texto em que relata o encontro com o ex-diretor em São Paulo, expondo a quebra de contrato do off que prometera.
O que ensinar numa época em que o jornalismo como negócio se torna aceleradamente um beco sem saída e a profissão debate-se entre a precarização, tal qual existia no início do século 20, e o caminho suave das relações públicas?
Essa é a pergunta cuja resposta vale US$ 1 milhão, porque não há alternativas fáceis. Berkeley aposta em quatro vertentes do jornalismo, algumas consagradas, outras novíssimas:
1. Investigação na tradição do grande jornalismo americano, cujo ápice parece ter sido o caso Watergate, que resultou na renúncia de Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, em agosto de 1974, dois anos depois do início de uma série de reportagens de Bob Woodward e Carl Bernstein, publicadas no Washington Post;
2. Narrativas digitais, que buscam explorar ao máximo o uso das novas tecnologias para contar histórias;
3. Hiperlocalismo é a tendência que prega que, com o desaparecimento dos jornais pequenos e médios, haverá um interesse crescente por notícias cada vez mais específicas sobre o seu bairro e políticos locais;
4. Jornalismo sem fins lucrativos, ou seja lá que nome se dê à tendência que prevê o financiamento de investigações por meio de doações e de parcerias com a mídia tradicional (o ProPublica, por exemplo, o mais bem-sucedido exemplo dessa tendência, trabalha junto e recebe recursos de mais de 50 empresas e organizações, como o 60 Minutes, da CBS, a CNN e o New York Times).
Essas quatro tendências são estudadas – e praticadas – separadamente, mas o que é mais iluminador, na minha opinião, é quando se juntam todas elas num único modelo, como é o caso do site California Watch.
O hiperlocalismo é praticado pelos estudantes em três projetos de sites jornalísticos criados por Berkeley: Mission Loc@al, Oakland North e Richmond Confidential, voltados para três áreas ao lado de Berkeley, todas com problemas candentes.
Projetos de peso
Mission é o bairro de San Francisco originalmente ocupado por latinos e que hoje sofre uma invasão dos novos ricos do Vale do Silício. Oakland North é uma área ao lado de Berkeley que choca pelo contraste. Enquanto Berkeley concentra a elite intelectual, Oakland North tem alta concentração de afroamericanos (53% da população, ante uma média nacional de 13%, segundo o censo), pobreza e homicídios que lembram mais o México do que a pacata Berkeley. Em 2011, foram assassinadas 103 pessoas em Oakland, das quais três tinham menos de 6 anos. Tudo isso é tema de reportagens do Oakland North.
Richmond Confidential é sobre a cidade na baía de San Francisco que concentra o que sobrou da indústria pesada e química na Califórnia e a herança de pobreza e poluição (guardadas as proporções, Richmond é uma espécie de Cubatão do norte da Califórnia). O jornalismo praticado nos três sites vai de notícias sobre violência e poluição a features sobre comida, sexo e mulheres que colecionam carros antigos. A qualidade é altíssima para o porte das áreas que cobre (Richmond, por exemplo, tem 100 mil habitantes).
Apuração aprofundada
Meu projeto preferido tem uma relação extraoficial com Berkeley: é o Center for Investigative Reporting California Watch, uma organização jornalística sem fins lucrativos que faz algo inimaginável no Brasil: investigações que duram um ano e meio. Pelo segundo ano, o California Watch é finalista do mais prestigiado prêmio jornalístico dos Estados Unidos, o Pulitzer. Em 2012, eles chegaram à final do Pulitzer com uma série de reportagens que revelava que escolas e hospitais haviam sido construí-dos em áreas de terremotos na Califórnia. Em 2013, a série finalista trata de abusos, entre os quais estupro, em prisões e centros de detenção. O caráter mais impressionante do California Watch é que tudo é feito em multiplataformas: jornal impresso, rádio, TV e internet.
O California Watch fazia produções sob medida, um jornal poderia pedir uma reportagem de meia página, de uma página ou duas, com fotos ou sem, com gráficos ou sem eles. Uma TV poderia requisitar uma série de uma semana, com reportagens de dois minutos por dia, ou um único programa de três ou quatro minutos.
No caso dos hospitais e escolas construídos em áreas onde era proibido edificar, havia até um aplicativo para celular, que podia ser baixado gratuitamente, para saber se a escola do seu filho estava em área de terremoto.
O grande dilema do California Watch é que se trata de um modelo praticamente impossível de ser reproduzido em lugares onde não haja doadores generosos e empresas habituadas a contribuir. Mesmo funcionando num lugar rico e generoso como a baía de San Francisco, o California Watch teve que juntar forças com outras duas instituições para conseguir recursos para suas investigações: o Bay Area Citizen, que publicava duas páginas semanais sobre a região no New York Times, e o Center for Investigative Reporting, criado em 1977 por Lowell Bergman.
Lowell faz um tipo de trabalho que também não existe no Brasil: investiga (suas reportagens podem tomar oito meses de apuração), dá aulas e levanta recursos para o centro de jornalismo investigativo.
Foi ele quem incentivou Natalia Viana a criar a Pública, uma instituição jornalística sem fins lucrativos no Brasil. Mas praticamente todos os recursos da Pública vinham dos Estados Unidos, em doações da Fundação Ford e da Open Society, de George Soros. Bastou a Open Society cortar recursos voltados ao jornalismo para que a agência tivesse que mudar o seu modelo para o crowdsourcing.
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Mario Cesar Carvalho é repórter especial da Folha de S.Paulo e autor do livro O Cigarro (Publifolha, 2001)