Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nós somos diferentes

Jornalistas de outras editorias, entendam. O jornalismo esportivo é diferente de vocês. Estudiosos da comunicação, reflitam. O jornalismo esportivo possui sua epistemologia própria. Afinal, sua função social é distinta das demais. “Interesse público”, “Interesse do público”, “Opinião”, “Informação” e outros conceitos ganham outra roupagem quando falamos de esporte.

Isso significa que estamos falando de uma área “alienada” do jornalismo? Distante das demais por não ter a pretensa objetividade ou mesmo por se fechar em um sistema do qual poucos admitem reconhecer a importância que tem para o tecido social? Não, o jornalismo esportivo não é nada disso. Aliás, ele é um produto ideal para entender muito do jornalismo como um todo. Talvez haja mais jornalismo no jornalismo esportivo do que gostariam os verdadeiros amantes do esporte.

Isso é posto porque, no jornalismo esportivo, não há a roupagem Clark Kent/ Superman que damos à profissão. Não há pretensões de mudança de realidade. Há apenas o “se debruçar” no esporte e ir de acordo com a epistemologia dele. No jornalismo esportivo, as histórias que os jornalistas contam de si não funcionam.

A história que o jornalismo não conta

Como surgem essas “histórias que os jornalistas contam para si mesmos”? O historiador da mídia David T. Z. Mindich acredita que a explicação de como a objetividade surge e modifica o jornalismo está ligada mais a um processo histórico do que sociológico. Para ele, no seu livro Just the facts – How “Objectivity” came to define American Journalism, a objetividade possui cinco componentes só compreendidos em um contexto histórico: independência, apartidarismo, uso da “pirâmide invertida”, faticidade e equilíbrio.

Todas elas surgem no período de 1830 a 1890, um processo que começa na América Jacksoniana, passa pela Guerra Civil norte-americana e chega na formação do New York Times, veículo que será modelo para a expansão desse processo em escala mundial. Ou seja, é uma construção dentro do jornalismo que vai, nas palavras de Mindich, da descamação dos laços partidários formais na década de 1830 até a aplicação da ética da “objetividade” na década de 1890.

A objetividade, na verdade, surge com a chamada penny press, os jornais populares de um centavo que se contrapunham aos jornais de seis centavos, mais próximos da agenda política. O crime era o principal combustível dos jornais de um centavo. Os duelos mortais entre pessoas proeminentes da esfera pública, a violência com prostitutas e as epidemias entre os mais pobres figuravam nas páginas deles. Enquanto os six-centers ignoravam tais pautas e se concentravam nas disputas políticas, os pennies – com o seu discurso de rejeição do divisionismo, do partidarismo e da violência – foram ganhando em aceitação pelo público e se transformaram em uma vantajosa prática comercial.

Jornalismo esportivo não dissimula “objetividade”

Com os pennies surge o jornalismo essencialmente informativo, independente e apartidário. Interessantemente é que, na mesma época, surgem exemplos semelhantes ao redor do mundo. No Brasil, às portas da Independência, nascia o Diário do Rio de Janeiro, o “Diário do Vintém”, que focava no crime e não na doutrina política. Da independência e apartidarismo para os outros três itens era apenas uma questão de tempo.

No entanto, Mindich não trata a “objetividade” como objetiva, no sentido de neutra e imparcial. De 1830 até os dias de hoje, com as reportagens “Isso é real”, de Dan Rather, a objetividade possui e escamoteia motivos. Tal como coloca o historiador norte-americano, “é por isso que jornalistas objetivos definem a si mesmos primeiramente ao definir outros: é muito mais fácil definir a si mesmo ao apontar ideologias em outros que falar sobre o que você pretende ao assumir um papel passivo”.

Exatamente por não ficar nesse jogo de escamoteamento é que o jornalismo esportivo se torna tão perigoso para o jornalismo como um todo, tanto para jornalistas como para os estudiosos da área. O jornalismo esportivo, por ter sua medida apenas no esporte que cobre, não precisa dissimular “objetividade”. Ele é partidário logo na medida em que escolhe um esporte para cobrir. Afinal, se é de futebol que estamos falando, o resto fica de lado.

A essência do jornalismo esportivo

Não confunda “Jornalismo Esportivo” com “Jornalismo e Esporte”. Boa parte da confusão também reside, nos tempos atuais, com o profundo entrelaçamento entre futebol e “coisa pública”, especialmente no Brasil às vésperas da Copa do Mundo de 2014. Por um lado, temos o futebol, quase o esporte absoluto do Brasil, cujo fenômeno é tão grandioso (quiçá mais) do que outros da cultura popular, tal como o Carnaval. De outro, um uso da máquina pública para o ganho privado do esporte.

Tal relação e crítica estão mais para o Jornalismo Político ou Econômico do que ao Esportivo. Antes de tudo, o Jornalismo Esportivo é um jornalismo técnico. De números, de fatos, de jogo e de dinâmicas próprias. Possui suas interfaces com a História, com a Sociologia e com a Economia, mas sua atividade-fim é relatar o jogo, opinar de acordo com os parâmetros postos e entrar na lógica de interesse público que o esporte demanda. Como o esporte é pura competição, essa situação permeia o Jornalismo Esportivo, especialmente no desenvolvimento de subjetividade. A opinião jornalística de esportes pressupõe não só um time que você torce, mas também todos os outros que você não torce.

Certa vez, José Lins do Rego escreveu que voltava “à crônica com o mesmo ânimo, com o mesmo flamenguismo, com a mesma franqueza. Nada de fingir neutralidade e nem de compor máscara de bom moço. Mas só direi a verdade. E este é um compromisso que estará acima do meu próprio coração de rubro-negro. Sou tão amigo de Platão como da verdade. Mas espero que o meu caro Platão esteja sempre com a verdade”.

Essa é a essência do Jornalismo Esportivo e nem por isso ele é menos Jornalismo. Ele apenas não dissimula como os demais. Nele, não há liberal escrevendo sobre socialismo fingindo que não é liberal. Não há esquerda escrevendo sobre direita fingindo que não é esquerda. No jornalismo esportivo, não há pseudocensura daquilo que o jornalista é. Sua formação está em plena potência. E quanto mais preciso ele for diante de seu compromisso pelo esporte, mais bem-sucedido ele será na sua função de comunicador.

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Rafael Duarte Oliveira Venancio é jornalista, doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela USP e professor de Jornalismo