Em meio à indignação de segmentos da sociedade que atuam em prol dos direitos humanos, gerada pela opinião da apresentadora do telejornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, que considerou legítima a atitude macabra de um grupo de pessoas que amarrou ao poste e torturou um adolescente negro e pobre acusado de furtar bicicletas no Rio de Janeiro, torna-se relevante direcionar nossa atenção a abusos semelhantes praticados por jornalistas e emissoras de TV em noticiários policialescos Brasil afora.
E no Espírito Santo, após anos longe do ar, eles voltaram com tudo. Esses programas tomaram de assalto as principais emissoras TV comerciais do estado em anos recentes, especialmente após a aparição bem sucedida (pelo menos em termos de audiência) do Balanço Geral ES, veiculado na TV Vitória/Record. À exceção da TV Gazeta – afiliada à Rede Globo, três canais locais de televisão de grande abrangência no estado passaram a dar amplo destaque em suas programações a esse tipo de programa “jornalístico”. São elas as TVs Capixaba (Band), Vitória (Record) e Tribuna (SBT).
O espaço ocupado por essas atrações na grade de programação é surpreendente, raro de se ver quando comparado a outros tipos de conteúdos regionais. Nenhum deles fica menos do que uma hora no ar. Mas todo esse espaço é destinado principalmente ao noticiário policial. Em outras palavras, à violência sem limites.
Linha esta, por sinal, adotada por todos os policialescos hoje no ar: Ronda Geral (TV Tribuna); Balanço Geral, ES No Ar e Cidade Alerta ES (TV Vitória); e Brasil Urgente Espírito Santo (TV Capixaba). E para não perderem telespectadores (e publicidade), outros telejornais veiculados há mais tempo, com o ESTV (TV Gazeta) e o Tribuna Notícias (TV Tribuna), também pegaram a mesma onda do “policialismo”.
Comunicação mais digna
Num misto de humor, deboche e terror, os apresentadores não poupam os “bandidos” e “vagabundos” de seus comentários que, na maioria das vezes, são entoados aos berros, ofensivos e desproporcionais ao fato noticiado. Suspeitos são linchados e humilhados em público por repórteres e apresentadores desses programas. Na maioria das vezes, esses cidadãos marginalizados pelo Estado, pela sociedade e, claro, pela própria mídia, não têm direito à voz nas matérias; e mesmo quando lhes dão essa rara oportunidade, ela é utilizada de forma a reforçar sua condição “natural” de “bandido”. Afinal, “é bandido quem quer”! Ou “bandido bom é bandido morto”! É esse o nível das “informações” passadas ao público capixaba.
Outra questão curiosa nesse tipo de jornalismo em canais de TV do Espírito Santo são as fontes consultadas pelos jornalistas. Como se conhecedora fosse das causas de “tanta violência” na sociedade, em grande parte das reportagens cujo foco são situações de violência urbana prevalece a Polícia Militar como única fonte utilizada pelos repórteres para “explicar” os fatos.
Mas e os órgãos estatais que servem para promover políticas de assistência social, de cidadania e de direitos humanos? Estes não constam nas pautas dos jornalistas, que preferem o senso comum das falas dos policiais militares, além de praticamente exporem frente às câmeras a identidade de menores infratores em clara situação de risco social, numa evidente afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a outras leis do país. Talvez aquelas fontes, bem como a de outros especialistas, poderiam estragar o espetáculo armado.
O alvo desses programas, considerados por seus criadores como “populares”, são as classes mais baixas da população. No entanto, o discurso conservador e policialesco denuncia a quais interesses eles estão a serviço. As classes mais abastadas – que detêm o controle dos meios de comunicação e cujos interesses são defendidos de forma implícita por esses programas policialescos – não são as que mais sofrem com a violência no ES e no Brasil.
Segundo dados do Ministério da Saúde, divulgados em 2010 e publicados na edição especial “Dilemas da Juventude”, da revista Caros Amigos, mais da metade (ou 53,3%) dos quase 50 mil mortos por homicídio registrados no país naquele ano era composta por jovens. Desse total, 76,6% eram negros e pobres, e 91,3% eram do sexo masculino. Estatísticas que desmentem o falso discurso disseminado pela mídia local, que insiste em colocar os mais jovens, negros e pobres na condição de principais agentes de crimes violentos, e não como seus maiores alvos.
Sem dúvida, essa é uma realidade que não destoa da que vivemos em terras capixabas. Mas de forma proposital, a mídia capixaba insiste em não colocar esse tema na pauta de seus jornalistas, e tratam a violência e as pessoas nela envolvidas de forma agressiva e abusiva.
A sociedade precisa enxergar isso e lutar por uma comunicação mais digna; e o Estado brasileiro, na sua condição de regulador das comunicações, deve cumprir o seu papel e fazer com que leis e Constituição Federal sejam zelados por todos.
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Vilson Vieira Jr. é jornalista, mestrando em Ciências Sociais (UFES) e associado ao Coletivo Intervozes