Desfazer mitos é tarefa essencial em qualquer tempo, mas se torna especialmente relevante em momentos de radicalização política, quando se acentua a tendência à simplificação e a disposição para o debate perde terreno para o sectarismo e a propaganda. Estaria aí o maior mérito do ensaio “Mídia, democracia e hipermodernidade”, que integra o livro As ruas e a democracia, de Marco Aurélio Nogueira: contestar certas crenças arraigadas no senso comum – particularmente no senso comum de esquerda – a respeito do papel e do poder da imprensa, relativizar teorias conspiratórias e desfazer a confusão entre regulação e controle da mídia.
Ao mesmo tempo, o enfoque adotado para caracterizar as transformações do mundo contemporâneo deriva de teorizações que, a despeito de sua larga aceitação, resultam muito mais do desejo de seus formuladores, um tanto despreocupados em oferecer fundamentações e argumentos sólidos para suas análises. Daí a reiteração de mitos sobre as alterações provocadas pelas novas tecnologias e seus reflexos no combate às grandes corporações de comunicação e na participação política dos cidadãos, que levam o autor a incorrer em uma série de contradições.
Crítica ao maniqueísmo
O ensaio, inserido num volume dedicado a avaliar o contexto e as perspectivas das manifestações de junho e julho do ano passado, privilegia uma tentativa de diálogo com o governo petista e as organizações de esquerda, apontando o maniqueísmo presente em teses que rejeitam em bloco a mídia como uma estrutura monolítica, necessariamente alienante, sempre a serviço dos piores propósitos – em suma, uma força a ser combatida e, se possível, eliminada.
Dessas teses resulta a demonização da Globo como símbolo de um poder midiático supostamente tentacular e o abandono da perspectiva dialética que deveria conduzir a crítica marxista na qual o pensamento de esquerda pretende fundamentar-se: descarta-se, assim, o enfoque da mídia como aparelho privado de hegemonia, na clássica formulação gramsciana. É como se a sofisticação e a complexidade da teoria marxista criassem entraves para a luta política. Entretanto, a formulação de teses equivocadas acaba por comprometer inescapavelmente a ação, restando como permanente consolo o discurso autolegitimante da vitimização.
Não por acaso o autor enfatiza a crítica a essa concepção simplista, que desvirtua a discussão política da mídia. Porém, dedica pouco espaço às engrenagens que servem à manutenção dos oligopólios na mídia brasileira. Este “outro lado” da questão precisaria ser abordado para uma melhor compreensão do que está em jogo.
Atividade necessariamente política
Nogueira começa por dizer que a atividade da imprensa, e da mídia de modo geral, é inescapavelmente política. Cita, justamente, a teoria do agendamento – a capacidade de pautar os temas em torno dos quais se desenvolverá o debate público – como uma característica elementar do jornalismo. Como se sabe, pautar, editar – em suma, fazer escolhas – são atitudes políticas, e as consequências disso deveriam ser claras: o noticiário resulta do enfoque determinado por quem o produz, embora, em qualquer caso, alguns padrões éticos devam ser observados. Os tribunais têm como punir os jornais que ultrapassam certos limites, diz o autor. O problema é que raramente punem, e isso deveria merecer alguma observação, para sairmos da argumentação genérica e descermos à realidade concreta.
A constatação de que a imprensa age politicamente e tem interesses a defender é importante para desfazer idealismos e desmontar, pelo menos no sentido geral de sua pretensa fundamentação, a “posição ingênua, ainda que possa servir para agitar”, dos que falam em “imprensa golpista”, a pecha preferida de certos círculos de esquerda para a crítica fácil – melhor dizendo, a condenação automática – ao noticiário contrário ao governo do PT.
É importante dizer com clareza que “todo jornal é instrumento de seus proprietários”, “todo jornal é veículo de luta por poder e por hegemonia”, e por isso “não se devia esperar que jornais dessem tratamentos idênticos aos governos”. Mas será possível afirmar que “jornais são cidadãos coletivos” e, adiante, que são “aparelhos privados de hegemonia”? Esses conceitos se equivalem?
Ainda: será possível concluir que “quem quer ter aplausos ou ‘tratamento justo’ por parte da mídia deve organizar seus próprios veículos de comunicação, como de resto fazem os governos, todos eles”? Em primeiro lugar, o “tratamento justo” – a não ser que as aspas indiquem ironia – deveria ser um pressuposto ético, independentemente das opções ideológicas, como, aliás, o autor reconhece ao dizer que os empresários não podem se isentar “de agir dentro da lei e conforme a Constituição”: seria mesmo absurdo se não fosse assim, embora este absurdo se reproduza com uma regularidade… absurda. Em segundo lugar, veículos de comunicação vinculados ao governo costumam ser automaticamente desqualificados – pela mídia privada e pelo próprio público – como instrumentos de propaganda, produtores de um jornalismo “chapa branca” e, por isso, não confiáveis. Como se fosse possível confiar na imprensa que, como a Folha de S.Paulo definiu em seu projeto editorial, está subordinada “apenas às leis do mercado” (grifo meu).
Círculo vicioso
A questão, portanto, não é tão simples: não basta o governo criar seus próprios meios, ou subsidiar meios alheios, pois eles estarão sempre sob suspeita. É muito justo afirmar que, “se somente existem jornais ‘de direita’, é porque a esquerda é fraca”. A propósito, na resenha que escreveu sobre o livro, Mauro Malin indaga por que o PT “jamais encarou seriamente o desafio de ter uma imprensa própria, como qualquer partido ou movimento com pretensão a travar a batalha das ideias” e sugere que o partido “nunca teve a unidade interna indispensável para constituir seus próprios meios de comunicação de massa”. É uma hipótese consistente, que poderia ser estendida às demais organizações de esquerda, permanentemente às voltas com as disputas entre as variadas “tendências” que abrigam.
Mas é preciso observar o círculo vicioso que se forma entre os jornais – mais ainda, entre a mídia, que abrange múltiplos produtos de comunicação, aí incluído o entretenimento – e o público, de modo a criar ou alimentar hábitos de consumo que se vão consolidando com o tempo. Certamente a mídia responde a demandas do público, do contrário não se sustentaria; mas, sistematicamente, reitera as crenças do senso comum, que, por sua vez, renovam essas demandas. Por isso, aliás, não basta dizer que “cada um assiste a TV que escolhe”, como a sugerir que o público é o melhor fiscal da mídia – ou, como já se disse tantas vezes, que o melhor controle é o controle remoto –, sem indagar como se dão essas escolhas.
Teria sido importante demonstrar que esse círculo vicioso só pode ser rompido com a proliferação de canais de comunicação – a “máxima dispersão da propriedade”, como Venício A. de Lima não se cansa de repetir –, que dependem basicamente da regulação da mídia. Nogueira se preocupa mais em alertar para a distinção entre regulação e controle. De fato, regulação é uma necessidade; controle é, ou deveria ser, uma impossibilidade num regime democrático. Mas teria sido interessante discutir por que a regulação enfrenta tantas barreiras, a começar pela resistência dos proprietários – pior ainda, concessionários – dos meios de comunicação, que insistem em confundir regulação com censura.
Em suma, a justa preocupação em apontar os equívocos da esquerda e do governo em relação a seu julgamento da imprensa hegemônica e a tentação autoritária que se identifica em discursos sobre o “controle social” dos meios de comunicação não encontra contrapartida na análise sobre os interesses escusos que resultam em tantas deturpações no noticiário cotidiano, aliás sistematicamente criticados neste Observatório.
Tudo que é sólido…
Porém, o aspecto mais problemático do ensaio é o painel traçado a partir da opção pelo conceito de “hipermodernidade”, que está longe de ser consensual e é adotado sem a devida fundamentação, ao mesmo tempo em que é substituído por “modernidade tardia” ou “radicalizada”. Podemos deixar de lado essas questões teóricas e considerar que passamos por um momento de transição, a partir das mudanças estruturais no sistema de produção que vêm ocorrendo desde a década de 1980. Mas não é de hoje que vivemos numa sociedade “movida a velocidade, a informações, a imagens”. Nunca é demais lembrar que a afirmação de que “tudo o que é sólido desmancha no ar” é de 1848 e que a velocidade é um elemento fundamental da lógica capitalista e dissemina na sociedade o sentido de aceleração do tempo, com todas as angústias daí decorrentes. A tendência é à radicalização desse processo, como vemos atualmente, mas seria preciso sustentar a afirmação de que agora os indivíduos “se ‘soltam’ da vida social e agem com maior independência”. As representações tradicionais – partidos políticos, sindicatos – perdem espaço, mas os indivíduos não deixam de buscar laços que lhes indiquem o pertencimento a alguma comunidade, sejam igrejas evangélicas, torcidas organizadas ou qualquer outra forma de vínculo coletivo.
Nogueira parece assumir acriticamente as formulações prevalecentes entre teóricos da pós-modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade ou lá o nome que tenha esse momento que poderíamos chamar, para evitar polêmicas eventualmente estéreis, de contemporaneidade. São, como se sabe, teóricos festejados no Brasil, e talvez esse sucesso dificulte a crítica à falta de fundamentação de suas análises, que tendem ao equívoco recorrente de apostar na tecnologia como motor das transformações sociais.
A propósito, a obra de Álvaro Vieira Pinto, produzida ainda nos anos 1970 e tardiamente editada – os dois volumes de O conceito de tecnologia (Contraponto, 2005) – mantém a atualidade justamente por oferecer argumentos para uma crítica das raízes dessa concepção.
Seria preciso examinar mais de perto afirmações destituídas de justificativa, como, por exemplo, a de que os “indivíduos tornam-se ao mesmo tempo muito sensíveis e muito críticos aos apelos midiáticos, já que se põem, diante deles, como pessoas informadas e desejosas de construir suas próprias opiniões”. O acompanhamento regular do comportamento das pessoas no ambiente virtual, que lhes possibilita uma inédita interação com as informações veiculadas pela mídia, sugere precisamente o contrário: a formação de guetos, a proliferação de reações irrefletidas e automáticas, reprodutoras de preconceitos do senso comum, e, no caso mais específico da política, a cristalização de posições baseadas em acusações e ofensas aos adversários, que às vezes beiram a histeria.
A expressão “brucutus da internet”, objeto de recente artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo e reportagem da Carta Capital, resume bem essa situação. Se pensarmos nas hipóteses de mudança de hábito que a internet poderia proporcionar, também teríamos elementos para dúvidas. Marco Schneider, por exemplo, chegou a resultados “um tanto decepcionantes” em pesquisa com estudantes do Centro Universitário Augusto Motta (UniSuam), todos moradores da periferia e a maioria com acesso doméstico à internet: “a impressão é que as pessoas tendem a explorar muito pouco o potencial da internet, reproduzindo as práticas de consumo às quais estavam habituadas antes de sua expansão”, declarou, em entrevista à Caros Amigos (edição especial de novembro de 2013).
Nada a ver com atitude crítica, portanto. Mas tampouco haveria surpresa aí: se as Escrituras já diziam que o número dos tolos é infinito, a tendência na internet seria ampliar exponencialmente o alcance da estultice.
Também mereceria questionamento a utilização de uma pesquisa do Ibope, feita no calor das manifestações, para a conclusão generalizante de que “as instituições perderam o poder de influência sobre as pessoas, que, em contrapartida, sentem-se cada vez mais confiantes na palavra de seus círculos íntimos (família, amigos, colegas)”. Não seria o caso de indagar de onde “família, amigos, colegas” retiram as informações em que “as pessoas” confiam?
As ilusões da “horizontalidade”
A produção de informações socialmente relevantes demanda competências específicas do trabalho de reportagem: identificação das melhores fontes, apuração rigorosa, capacidade para fugir de armadilhas plantadas pelos interesses em jogo. Não é tarefa para qualquer um, embora seja muito sedutora a ideia de que, com a internet, “todos” estamos em igualdade de condições para informar e polemizar. Supor que “não há donos ou proprietários do processo” é um agradável desejo que não corresponde à realidade, mas que se relaciona com a ilusão da “horizontalidade” da rede, como se a internet não reproduzisse as relações de poder que estão na sociedade.
O enaltecimento do suposto poder de comunicação disseminado entre “todos” ignora o problema elementar da eficácia dessa comunicação: por que confiaríamos em quem não conhecemos? Mas esta seria uma pergunta voltada para quem aposta no senso crítico do cidadão, enquanto o comportamento corriqueiro na rede revela uma inconsequência assustadora, que tende a reproduzir automaticamente o que circula, seja por sua aparente verossimilhança, seja pela surpresa que desperta ou, simplesmente, porque é algo em que desejamos acreditar. A adesão maciça à convocação de uma “greve geral” durante as manifestações de junho, a que ninguém com um mínimo de consciência daria crédito, é um exemplo notável do nível a que pode atingir essa irresponsabilidade coletiva. Diante disso, seria possível afirmar que “os cidadãos não se deixam mais guiar, teleguiar ou induzir com facilidade”?
Contradições
Além dessas questões de fundo, há também algumas contradições ou inconsistências na argumentação sobre esses “novos tempos”. Um exemplo: o autor afirma que “a mídia mantém ativo o antagonismo dos discursos, ajudando assim a que se dissolvam consensos fáceis e opiniões cristalizadas”, mas logo depois aponta “a ausência de diversidade de opinião no atual sistema midiático brasileiro”. Outro exemplo: “A opinião dominante torna-se cada vez menos a que vem ‘de cima para baixo’ ou a que é veiculada pela grande mídia”; no entanto, as grandes empresas de comunicação “ainda hegemonizam o campo da comunicação informativa e do entretenimento” e, ao formarem oligopólios, “ficaram com ainda mais poder. Compram e vendem o tempo e a atenção de seus leitores, ouvintes e espectadores”. Ainda: “A atuação oligopólica da mídia produz inevitável redução dos espaços de atuação da ‘mídia alternativa’”. Mas “se antes os grandes veículos de mídia (…) detinham o controle da informação e pautavam o debate público de modo quase exclusivo, agora eles são obrigados a dividir essa função com as redes digitais”.
Compreende-se que a preocupação do autor não seja com uma teoria crítica da mídia, objeto de tantos estudos e controvérsias nas últimas décadas. Ainda assim, num livro que, embora escrito no calor da hora, revela o cuidado com uma análise densa da conjuntura em que brotaram os protestos de junho, o capítulo sobre mídia mereceria abordagem mais profunda. Os pontos aqui sugeridos são uma tentativa de ampliar esse debate.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)