“No futuro nós vamos usar vírgulas?”, pergunta este artigo da Slate. O texto parte da declaração de um linguista e professor da Universidade de Columbia, John McWhorter, para quem a vírgula está se tornando redundante na era digital – e poderia ser abolida sem causar nem coceguinha. “Tire as vírgulas dos textos que lemos por aí”, desafia McWhorter, “a perda de clareza vai ser tão pequena que poderíamos deixar de usá-las de uma vez.”
Além da internet, dão razão a McWhorter a Gertrude Stein, que considerava as vírgulas “servis e sem vida própria”, e os irmãos Fowler, que em The King’s English, de 1905, anotaram: “Qualquer um que colocar muitas vírgulas próximas umas das outras deve reconhecer que está se tornando desagradável e questionar suas ideias tão rigorosamente quanto deveria fazer em relação a uma conduta desagradável na vida real”.
Na última semana, diante de tal crise da vírgula, o escritor e ensaísta inglês Pico Yier saiu em socorro do referido sinal – que de acordo com estudiosos aparece num texto pelo menos três vezes mais do que o ponto final e cinco vezes mais do que o ponto e vírgula.Numa entrevista, Yier falou que, ao contrário do que diz o professor McWhorter, nunca precisamos tanto de vírgulas quanto hoje em dia. “Justamente porque a pontuação vem minguando em nossos e-mails e mensagens de texto, e porque as pausas são cada vez mais necessárias.” De acordo com Yier, parte da beleza da vírgula é que ela oferece um descanso, como na música, “uma pausa que dá à música uma forma melhor, uma harmonia mais profunda”. Yier, que se diz adepto do Slow Speech, preza pela lentidão no âmbito da comunicação humana. “Sem a vírgula”, pondera, “nós perderíamos as nuances e os subentendidos, e acabaríamos gritando em caixa alta uns com os outros.”
A verdade é que nenhum debate teria ocorrido se estivéssemos falando do ponto final, das aspas ou das reticências. Discutir vírgula acirra os ânimos e, desde São Jerônimo – que no século 5 d.C. concebeu o primeiro sistema de divisão da frase (o per cola et commata) –, nos põe diante de nossos mais íntimos suspiros, pausas e hesitações. Saramago não seria possível sem a vírgula. O fundador da New Yorker, Harold Ross, colocou uma vírgula no trecho “Depois do jantar, os homens foram para a sala de estar” para que os homens pudessem ter tempo de afastar a cadeira, ficar de pé e, então, se dirigirem à sala. E a ironia da frase que abre Desonra, de J.M. Coetzee (e seu personagem travado, frio e pouco afetivo), tampouco existiria se não fosse ela: “Para um homem de sua idade, cinquenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema do sexo”.
Pausas dramático-respiratórias
No Brasil, uma das manias da poeta Alice Sant’Anna é não colocar ponto final no fim do verso, nem vírgula. “Esse espaço em branco cria leituras ambíguas, coisa que a prosa não pode fazer, porque precisa preencher a linha toda, correr até o fim da margem”, diz. “Por gostar tanto de pontuação, uso tão pouco nos poemas.” Daniel Galera costuma usar menos vírgulas do que a maioria dos seus pares. “Meu estilo suprime certas vírgulas obrigatórias naturalmente, pra ajustar o texto à dicção que procuro alcançar. Algumas vírgulas me parecem mais acidentes de leitura do que recursos para auxiliar a compreensão e o ritmo.” E o poeta Fabrício Corsaletti tergiversou e citou o travessão. “Olha, uso muito o travessão. É difícil eu escrever uma crônica ou um poema sem um travessão pelo menos. O travessão isola a frase, cria uma independência para ela. O Alberto Martins [escritor, autor de A história dos ossos] diz que ele é o sinal mais primitivo da língua. Como se fosse um traço de um homem das cavernas na pedra, feito com carvão.” Além disso, não devemos esquecer que é possível percorrer páginas e páginas dos romances de Cormac McCarthy sem esbarrar numa única vírgula sequer. Leitora atenta de McCarthy, a apresentadora Oprah Winfrey disse ter visto poucas vírgulas e “um dois pontos uma única vez”. Mas nunca um ponto e vírgula. Ao que McCarthy assentiu: “Ponto e vírgula não”.
De volta à ala pró-vírgula, a obsessão de Pico Yier pelo sinal é antiga. Em 2001, escreveuum artigo para a revista Time em que afirmava que discutir vírgulas é como discutir o amor. “No amor as menores coisas (ou os menores detalhes) são desesperadamente importantes, por isso os amantes prestam tanta atenção às mais ínfimas marcas numa página”, diz. “Ninguém lê uma carta tão intimamente quanto eles, esforçando-se para ouvir as suas nuances, suspiros, pausas e hesitações, debruçados sobre o que pode haver de mais secreto em cada cadência.”
No novo filme de Spike Jonze, Her, há uma cena sobre amor e vírgulas, uma resposta possível à pergunta do início: “No futuro nós vamos usar vírgulas?”. A história se passa num futuro não muito distante onde Theodore (Joaquin Phoenix) apaixona-se por um sistema operacional instalado em seu computador, Samantha (uma Scarlett Johansson versão voz, rouca e sensual). Na referida cena, uma das mais bonitas do filme, o casal discute, e durante a briga, irritado, Theodore pergunta a sua namorada-robô a razão de ela ter suspirado no meio de uma fala. “Por que você faz isso? Quero dizer, você não precisa de oxigênio.”
Isso talvez queira dizer que, humanos ou máquinas, no futuro, vamos seguir fazendo uso de vírgulas e de pausas dramático-respiratórias – não é só pelo oxigênio. E vamos colocar e tirar vírgulas. E talvez debater intensamente sobre seu uso ou não. Em 1879, Oscar Wilde escreveu em seu diário: “Hoje cedo tirei uma vírgula. À tarde, coloquei-a de volta”.
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Emilio Fraia nasceu em São Paulo, em 1982, é editor, jornalista e escritor. É autor da graphic novel Campo em branco (Quadrinhos na Cia., 2013, em parceria com DW Ribatski) e do romance O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, com Vanessa Barbara). Foi repórter das revistas Trip e piauí, e editor de ficção da editora Cosac Naify