Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma outra imprensa é possível?

Não acredito no princípio iluminista de que o acesso à informação (ou ao conhecimento) pode transformar a realidade. A batalha das ideias, da qual a imprensa é elemento central, precisa ser, ao mesmo tempo, reflexo e impulsionadora das lutas concretas travadas pelos movimentos sociais reais. Na vida real, mesmo diante da significativa explosão social dos últimos meses, temos tido dificuldade de construir uma frente de esquerda popular que dispute eleições ou organize a participação direta nas ruas. E isso se reflete na batalha das ideias, onde também não conseguimos organizar uma frente informativa de esquerda que atue no sentido de desmistificar e problematizar as mentiras, manipulações e, principalmente, as inversões ideológicas de interpretação do mundo que vêm da grande mídia empresarial.

Desde as manifestações de junho, com tudo de novo e diferente que mobilizou as ruas, determinados modos de governar têm sido veementemente recusados mesmo por quem nunca participou de uma passeata. O resultado é que políticos que há pouco tempo representavam uma maioria admirável, como é o caso de Sergio Cabral e Eduardo Paes, respectivamente governador e prefeito do Rio de Janeiro, encontram-se, neste momento, no limbo. Digam o que disserem sobre a falta de base organizativa dessas manifestações, elas tiveram repercussão, no curto prazo, para muito além delas próprias. Foi essa mobilização que fez com que, apesar dos esforços em contrário dos Bonners da vida, o telespectador do Jornal Nacional visse professor apanhar da polícia em praça pública e, bem recentemente, gari ser chamado de marginal por reivindicar um salário de R$ 1.200.

A incapacidade de se construir uma imprensa popular

Enquanto a manipulação está no nível de questões mais gerais, como, por exemplo, a cobertura parcial sobre a crise na Venezuela, seu potencial ideológico, de inversão, naturalização e ocultamento da realidade é grande. Mas o fato é que esses impasses, desde junho, estão se tornado mais concretos e próximos a cada dia. Antonio Gramsci dizia que, em relação à sua concepção de mundo, o senso comum não é convencível por argumentos. Composto de um amontoado de referências diferentes e mesmo contraditórias, ele tem como baliza principal a confiança nos seus, a confiança no que dizem e fazem aqueles que pertencem ao seu grupo social.

Essa perspicácia do comunista italiano parece de grande importância agora: afinal, entre amigos, familiares, colegas de trabalho ou vizinhos, todo mundo conhece ou conhece alguém que conhece um professor e um gari, e sabe que eles não correspondem àquela imagem reproduzida na TV ou no jornal, seja a de vândalo, de vagabundo ou de ingênuo a ponto de ser manipulado por interesses políticos e econômicos outros. A mentira ganha forma concreta. Posso estar sendo otimista, mas acredito que isso tem feito com que a credibilidade e o poder de fogo das grandes empresas de comunicação, principalmente as Organizações Globo, também caminhem para o limbo. Se vão permanecer lá ou se recuperar num tempo breve, só a história (presente) vai dizer.

O problema é que não temos o que colocar no lugar, nem dos políticos nem dessa mídia. E uma coisa tem diretamente a ver com outra. Não se conseguiu organizar uma frente de esquerda, seja partidária, seja de movimentos sociais, que ocupe esse espaço e, ao mesmo tempo e pelas mesmas razões – sejam elas quais forem –, isso tem reflexo direto na falta de unidade construída para a batalha das ideias.

Como nos ensinaram clássicos do pensamento marxista, como Lenin e Gramsci, cada um adequado ao seu tempo, o jornal (no sentido mais amplo, independentemente da mídia ou suporte) pode contribuir com o aprofundamento e a organização da luta social. Não pode inventá-la, nem substituí-la, sob o risco de se cair num idealismo de que a informação e o conhecimento resolvem os problemas reais. Mas pode retroalimentá-la, fortalecê-la e se fortalecer no mesmo movimento. A incapacidade de se construir uma imprensa popular de caráter nacional ou internacional, que efetivamente dispute sentidos e hegemonia, tem relação direta – embora não de causa e consequência – com as dificuldades pelas quais as lutas sociais passam no Brasil desde a década de 1980, na mobilização e na organização. Não arrisco dizer no que essas manifestações recentes vão dar, mas elas já são um marco nessa história e, portanto, são uma janela de oportunidade para novos marcos também no campo da comunicação.

O pente fino editorial

Que imprensa seria essa obviamente não se pode prever porque isso depende do que seriam e de que forma teriam as lutas reais, travadas por pessoas, grupos e organizações concretas e do grau de rechaço que elas podem produzir a esse mundo que aí está. É possível (e preciso), no entanto, ter clareza do que ela não pode ser, ou daquilo a que ela precisa se contrapor, no terreno da comunicação. E aqui temos que ir ao ponto da caracterização mais estrutural daquilo que chamamos de grande imprensa, mídia corporativa, comunicação de massa, imprensa empresarial entre muitos outros nomes mais ou menos corretos de acordo com a crítica que se faça. São todos apelidos adequados e mais fáceis de digerir, mas não podem ocultar o nome de batismo, aquele que mostra a filiação desses veículos e dessa prática jornalística que se naturalizou como se fosse de todos nós. Não é. Pode ter cheiro de naftalina, mas é isso mesmo: trata-se da imprensa burguesa, uma imprensa que tem lado numa sociedade dividida em classes. E isso mesmo a despeito das boas intenções e esforços éticos – quando é possível – dos muitos jornalistas que a ocupam na crença de estarem prestando um serviço público à democracia.

Identificar o caráter de classe dessa imprensa significa reconhecer que os “interesses” frequentemente denunciados desses grupos empresariais no trato jornalístico dos fatos (ou não-fatos) vão muito além dos benefícios esparsos de um anúncio publicitário. Os ganhos, econômicos em primeiro lugar, e políticos como forma de sustentar os econômicos estão em esferas muito maiores e dependem também da sustentação de concepções de mundo que, na melhor das hipóteses, deixem tudo como está. Na pior – ou será que pode piorar ainda mais? –, apelam, na batalha das ideias e no lobby político direto, por mais repressão, mais ódio institucional e perda de direitos sociais (tudo sempre travestido de interesse público), como temos visto recentemente.

Com isso quero dizer que a grande imprensa funciona como uma conspiração diária, em que os Marinho e seus semelhantes controlam cada detalhe da notícia? Claro que não. E nem é necessário. Não resta dúvida de que, sobretudo em momentos de crise de hegemonia, como o atual, no Brasil, esse pente fino editorial se faz presente, a ponto de gerar mal-estar nos próprios jornalistas, como aconteceu no Globo depois da capa do dia 20 de outubro passado. Mas essa não é a regra. No dia a dia das redações, aspectos corriqueiros e naturalizados garantem uma tal fragmentação do trabalho jornalístico que, ao impedir os nexos e contextualizações, mantém uma impressionante coerência ideológica. De um lado, temos um processo de trabalho que explora, robotiza e emburrece o jornalista. De outro, para compensar, temos um modelo de jornalismo e uma concepção de notícia que isolam os fatos, em nome da objetividade, retiram-nos da história, em nome da atualidade, e os jogam no esquecimento logo que é conveniente, em nome da velocidade própria desse jornalismo.

Canais próprios

Por tudo isso, a luta no campo da comunicação precisa ser pela construção de canais e veículos próprios, que desempenhem o papel de aparelhos privados de hegemonia, na conceituação de Gramsci, mas no sentido inverso ao da ordem estabelecida. Indo direto ao ponto: os jornalistas da grande imprensa, imersos num furacão de fragmentos que se tornou o trabalho jornalístico, devem ser disputados. Já a grande imprensa (burguesa), não.

Não se trata de negar a importância, hoje, de se ocupar espaço nesses veículos para, de vez em quando, em momentos cruciais, se abrir alguma brecha para o contraditório ou se criar um constrangimento, como recentemente aconteceu com a coluna de Caetano Veloso no Globo sobre a tentativa do jornal de envolver o deputado Marcelo Freixo na morte do cinegrafista da Band. Mas é preciso não esquecer que isso é tão importante hoje apenas porque não temos outra opção, já que esses são os únicos jornais e telejornais massivos. Essa tática importantíssima, portanto, revela um vazio, uma ausência, e uma dependência estrutural; não pode levar à ilusão de que, como formiguinhas, mudaremos o caráter de classe de uma imprensa empresarial que depende dessa divisão para sobreviver – não esqueçamos, apenas para que esse papo não fique abstrato demais, que três irmãos da família Marinho figuram na lista dos maiores bilionários do mundo produzida pela revista Forbes este ano e eu não conheço concretude maior do que essa.

Antes que aqueles que não reconhecem a cisão estrutural dessa sociedade e, portanto, não acreditam na luta de classes denunciem o cheiro de naftalina dessa proposta, me adianto em dizer o que ela também não pode ser “à esquerda”. Em primeiro lugar, não me refiro a jornais panfletários e nada jornalísticos como os que temos hoje de partidos ou sindicatos. Também não me refiro à comunicação comunitária, que desempenha um papel muito importante nas lutas locais, mas tem pouco potencial para uma efetiva disputa de hegemonia que se dá no nível da batalha das ideias. Tampouco trato aqui de um tipo de imprensa pequeno-burguesa que se atribui o título de alternativa para fazer, em nome de uma suposta esquerda, o mesmo tipo de manipulação grosseira que as Veja da vida fazem pela direita. Falo de uma imprensa que ressignifique, na sua própria elaboração, a prática do jornalismo; que dispute a (contra)informação e os sentidos mais gerais dos fatos imediatos em nome (e pelas mãos) de uma frente de movimentos sociais orgânicos e, se for essa a configuração que as ruas apontarem, também partidos de esquerda. Que trabalhe não na construção de versões alternativas dos fatos, mas na desconstrução da ideologia vigente, o que significa atuar para desnaturalizar, desocultar e desinverter as verdades que foram e são cotidianamente postas de cabeça para baixo.

Em resumo: uma imprensa e um jornalismo que possam responder à concentração monopólica e de classe que temos hoje não com uma “diversidade” abstrata, que busque o falso princípio democrático de fazer as pessoas pensarem por si, mas com o esforço de construção concreta de um outro si, que só existe e faz sentido social e coletivamente.

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Cátia Guimarães é jornalista