Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Parcialidade impera nas emissoras de TV

O governo federal americano gastou milhões de dólares na implantação de um sistema de mídia no modelo ocidental no Iraque, patrocinando pelo menos duas emissoras de televisão e oferecendo a jornalistas locais cursos de treinamento sobre ética e neutralidade. O esforço incentivou a criação de dezenas de canais de televisão iraquianos. Mas tais resultados estão longe de ser o que a administração Bush havia planejado, tendo em vista que os canais são cada vez mais partidários e freqüentemente estimulam as tensões existentes no país.


O resultado desta campanha foi visível entre domingo (26/3) e segunda-feira (27/3), quando a estação estatal al-Iraqiya interrompeu sua programação regular para transmitir imagens de corpos ensangüentados em uma mesquita em Bagdá. No domingo à noite, soldados iraquianos e americanos mataram pelo menos 16 pessoas, no que os americanos classificaram como um tiroteio com militantes. Na al-Iraqiya, entretanto, o ataque foi divulgado como o ‘assassinato de fiéis desarmados em uma mesquita muçulmana xiita’. Entre as entrevistas com políticos xiitas que criticavam os americanos, a câmera mostrava os parentes dos mortos.


A al-Iraqiya foi criada pela Autoridade Provisória da Coalizão, liderada pelos EUA, como uma experiência de radiodifusão pública. Posteriormente, o canal ficou do lado do governo iraquiano e agora é amplamente visto como partidário. ‘O objetivo era ser um canal neutro, destinado ao povo iraquiano, mas até agora [a al-Araqiya] não conseguiu atingir este objetivo’, afirma Mohammad Shaboot, editor do jornal estatal al-Sabah.


A vida pela TV


Confinados em casa devido à rotina de violência e toques de recolher, os iraquianos assistem a seu mundo pela televisão via satélite. Mas as emissoras iraquianas disponíveis oferecem, em sua grande maioria, pontos de vista tendenciosos. Em um canal, o âncora refere-se à insurgência sunita como a ‘resistência honrada’, enquanto apresenta imagens de iraquianos feridos e soldados agressivos. Em outra emissora, os insurgentes são descritos como terroristas e o narrador pede por uma sanção severa por parte do governo sunita. Ainda em outro canal, a insurgência parece nem existir.


Até a invasão americana, ocorrida em 2003, os dois canais autorizados a funcionar pelo governo iraquiano ofereciam apenas propaganda oficial e melodias patrióticas. A queda do regime de Saddam Hussein, no entanto, causou uma revolução na televisão e levou à criação de dezenas de canais. Os telespectadores locais têm agora acesso a dramas iraquianos no estilo ocidental, como o Caricature, similar ao humorístico americano Saturday Night Live, a reality shows e a programas de transformação. Se a parte de entretenimento foi expandida, o mesmo não se pode dizer do jornalismo.


Pontos de vista diferentes


A cobertura de um ataque a bomba em uma mesquita xiita em Samarra, no dia 22/2, que quase levou o país a uma guerra civil, foi particularmente incendiária. Canais com ligações aos árabes sunitas, como o Baghdad TV – liderado pelo ex-membro do Partido Baath Saad Bazzaz e administrado pelo Partido Islâmico Iraquiano, o mais importante grupo sunita do país –, enfocaram o sofrimento dos sunitas na represália ao atentado. Um apresentador recebeu telefonemas dos telespectadores no ar e alguns deles encorajaram a criação de uma milícia sunita para enfrentar a milícia xiita.


Já as emissoras administradas por xiitas, como a al-Furat – patrocinada pelo Conselho Supremo para a Revolução Islâmica, principal partido xiita do Iraque – e a al-Iraqiya, deram ênfase à destruição da mesquita e ao sofrimento dos xiitas no governo de Saddam Husseim. A al-Furat chegou a colocar no ar slogans pedindo que os xiitas defendam seus direitos.


No início, a al-Iraqiya não tinha muita credibilidade com a população local porque havia sido fundada por americanos. Agora, até mesmo alguns xiitas criticam o foco excessivamente xiita da emissora e sua cobertura tendenciosa. ‘Quando algo acontece em Karbala ou Kadhimiya [territórios dominados por xiitas], vemos que eles fazem uma cobertura completa’, afirmou o empresário xiita Ahmed Hussein. ‘Mas quando algo acontece em Faluja [cidade amplamente sunita], não aparece muito na televisão, então escutamos os sunitas se perguntarem: ‘Por quê?’’.


Outros canais são ainda mais partidários. Em uma transmissão, a apresentadora da al-Furat, vestida com o hijab (véu islâmico) e um abaya (manto da cabeça aos pés) pretos, fez a introdução de um discurso do líder do maior partido xiita sobre as famílias xiitas desalojadas pela violência partidária. Depois das notícias, uma edição de imagens mostrava fiéis beijando as paredes de mesquitas sagradas xiitas em Najaf e Karbala enquanto eram entoadas canções religiosas.


No mesmo horário, na Baghdad TV – conhecida como a ‘TV do Baath’ entre os xiitas, que criticam sua programação pró-sunita – um cantor indonésio e um apresentador vestindo um terno conversavam com um clérigo sunita por telefone. O programa debatia como conviver seguindo leis religiosas.


Já a al-Rafidain mostrava entrevistas com pessoas contrárias à invasão americana. ‘A ocupação não pode durar mais. Pelo desejo de Deus, vamos nos livrar deles’, dizia um dos entrevistados. Na Baghdadia, um canal sunita moderado, o âncora anunciou: ‘O presidente Bush confessa que ocupar o Iraque é uma tarefa muito difícil’.


Justificativas


Os diretores dos canais de televisão defendem sua cobertura e alegam que os rivais são tendenciosos. Ahmed Rushdi, diretor de notícias da Baghdad TV, afirmou que seu canal, ‘ao contrário da al-Iraqiya’, não é tendencioso – embora seja patrocinado pelo maior grupo político sunita do país. ‘Sempre mostramos os fatos como eles são’, afirma. A emissora não tem correspondentes em nenhuma das cidades xiitas de Najaf e Karbala, e Rushdi afirma que isto se deve ao fato dela ser ‘nova no ramo’ e ainda estar recrutando jornalistas no país.


Até mesmo as notícias sobre esportes são tendenciosas. ‘Nós nos concentramos nas estrelas do esporte que foram oprimidas durante o regime de Saddam’, diz Muhsin Fasani, da al-Furat.


Na al-Hurra, canal patrocinado pelos EUA, um apresentador relata o perfil de um dissidente sírio. ‘Um olho na democracia abre o olho para a liberdade’, afirma um dos participantes do programa. A programação é basicamente formada por discursos de Bush e shows de entretenimento para jovens.


Apesar do investimento dos EUA, muitos iraquianos com educação mais elevada assistem às estações sediadas no Golfo Pérsico, como al-Arabiya e al-Jazira, geralmente chamadas pelo governo americano de ‘anti-americanas e pró-insurgentes’. Informações de Louise Roug [Los Angeles Times, 28/3/06].