Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Empresas jornalísticas devem recomeçar do zero

[A pesquisa “A Business Model for Digital Journalism”, financiada pela FAPESP, será publicada na íntegra na edição de abril da Revista de Jornalismo da ESPM, depois estará disponível em seu site e também neste Observatório.]

De incendiário a bombeiro. Caio Túlio Costa, como outros talentos intelectuais brasileiros, entre os quais Mario Sergio Conti e Demétrio Magnoli, ao tempo de estudante militou na corrente trotskista Libelú – forma a que havia sido reduzida a combativa “Liberdade e Luta”. O circo fumegou, mas não pegou fogo. E Caio Túlio foi cuidar da vida. Passou pelo cultural Leia Livros e fez carreira na Folha de S.Paulo. Deu aula de Ética, participou de projetos inovadores na internet e chegou a dirigir o Comitê de Estratégias Digitais da ANJ, de onde partiu para uma temporada na famosa Columbia Journalism School, na qual desenvolveu o que chama de “um modelo viável para as empresas jornalísticas no meio digital”. É sobre essa experiência que ele fala na entrevista a seguir.

Você tem uma rica trajetória profissional como jornalista e teve uma participação importante em projetos inovadores como o UOL e os portais e serviços do iG, iBest e BrTurbo. Como você resume as transformações da indústria jornalística nesse período?

Caio Túlio Costa – As transformações são notáveis, disruptivas, revolucionárias. O meio digital veio virar de ponta-cabeça o negócio do jornalismo, trouxe uma nova cadeia de valor. Nela, o jornalismo se tornou algo pós-industrial, com outras medidas e outros feitios. O compartilhamento, seja de conteúdo seja de receitas, passou a dar as cartas. A velha indústria ainda não entendeu isso completamente.

Você acaba de voltar dos Estados Unidos, onde realizou uma pesquisa junto à Escola de Jornalismo da Universidade Columbia. Poderia resumir seu estudo, que será publicado em breve?

C.T.C.– É um trabalho que tenta apresentar uma estratégia possível para as empresas jornalísticas formatarem um modelo de negócio rentável na era digital. A partir da constatação de uma disrupção nesta indústria, sugere uma modelagem capaz de garantir produção jornalística de qualidade, independência e vigilância crítica dos poderes. Para tanto, descreve a cadeia de valor do negócio tradicional da imprensa e reelabora-a conforme a realidade da comunicação no negócio digital.

Além disso, diagnostica o problema geracional que atrapalha o desenvolvimento de produtos na plataforma digital (nativos analógicos versus nativos digitais). Situa as empresas no ambiente disruptivo do jornalismo pós-industrial e alinha os problemas que as empresas jornalísticas enfrentam com gigantes como Facebook e Google. Detalha também os desafios na questão dos investimentos em tecnologia. Desenha como as empresas devem abraçar as redes sociais e explica como estão acontecendo as mudanças na produção de conteúdos para adequá-los à nova realidade digital. Com exemplos e dados de mercado, o estudo sugere a formulação estratégica do modelo de negócio, detalha como é possível funcionar a publicidade neste novo cenário, explica de que forma os paywalls (cobrança de assinatura dos conteúdos) fazem parte da solução e injeta um terceiro elemento fundamental na estratégia: a produção de serviços de valor adicionado, num movimento que transforma a tradicional empresa de informação em uma empresa de serviços.

Como fazer a transição da cadeia de valor clássica para uma que corresponda à era digital?

C.T.C.– A empresa precisa recomeçar do zero – mesmo na produção de conteúdo. O digital é outra coisa, com outras leis e com outra forma de consumo. E a empresa não dever temer ter de matar a sua própria empresa-mãe para se dar bem no meio digital. Caso contrário, outros a matarão. Neste caso é melhor que você mesmo faça este serviço de morte e renascimento.

Em seu trabalho, você defende que os jornais adotem o que considera algumas soluções. A primeira delas é o paywall. Por que e como?

C.T.C.– Eu não indico apenas a solução paywall, ou seja, uma simples barreira de pagamento. Indico, sim, a solução do paywall poroso, ou flexível, pela qual o jornal não perde em audiência (importante para todas as modalidades de publicidade online) e ao mesmo tempo conquista assinantes. Não é uma solução simples e exige manejo atento e mudanças constantes. É algo mais sofisticado. Está dando certo no New York Times, por exemplo.

E quanto à solução de publicidade?

C.T.C.– É um problema para qualquer publicação, porque exige escala. Jornais, revistas, sites e publicações jornalísticas online só terão futuro com a publicidade (e mesmo assim como parte da receita) se se unirem numa imensa rede de publicidade própria. É a única maneira de ganhar escala e de concorrer (ou ter poder de negociação) com gigantes como Google e Facebook.

E a de serviços de valor adicionado?

C.T.C.– Esta é a salvação da indústria caso saiba migrar do atual modelo de empresa de informação para empresa de serviços. São infinitas as possibilidades de composição de receita com produtos relacionados direta ou indiretamente com o meio jornalístico. O meu paper contém vários exemplos.

Você já havia escrito sobre o mesmo tema para a revista da ESPM, em 2012. Qual a(s) principal(ais) diferenças entre os dois trabalhos?

C.T.C.– Naquele texto eu tratei mais da questão geracional, coisa que está presente também neste produzido em Columbia. Mas o trabalho de Columbia é muitíssimo mais completo na tarefa de identificar os problemas e sugerir soluções.

Você foi diretor do Comitê de Estratégias Digitais da ANJ antes de viajar para os EUA. Pode resumir o trabalho que vinha sendo feito e como as questões que eram tratadas ali são abordadas nos EUA?

C.T.C.– Durante o tempo em que estive à frente do Comitê, tivemos ao menos três grandes frentes de ação. A primeira é exatamente a da criação de uma rede de publicidade dos jornais, uma das iniciativas fundamentais apontadas no estudo para a viabilidade das publicações no meio digital. O Comitê tem impulsionado esta ideia junto aos associados e tem trazido soluções possíveis, tanto do ponto de vista tecnológico quanto do ponto de vista comercial. Outra frente foi a das conversas com o Google na esteira da não participação dos jornais brasileiros no Google News. A terceira frente foi a de conversações com a Apple no sentido de diminuir a comissão paga pelos jornais nas vendas da Apple Store e ter acesso aos dados dos clientes via Apple. Nos Estados Unidos estas mesmas questões são enfrentadas pelos jornais, mas eles estão muito aquém da ANJ no quesito união para negociar melhor com os gigantes da internet. No quesito rede de publicidade de jornais, os americanos tiveram uma má experiência com a Quadrant One, fundada em 2008 e desativada no ano passado. Não deu certo. O insucesso não significa que a ideia deva ser abandonada. Ao contrário, a união dos jornais, revistas e publicações digitais no sentido de criar uma rede de publicidade própria, fortemente alavancada por investimentos em tecnologia, é talvez a melhor opção para concorrer com as facilidades do Google e do Facebook – ou ser um parceiro esperto deles.

A Quadrant One unia a The New York Times Company, a Tribune Company (que reúne vários jornais, entre os quais o Los Angeles Times e o Chicago Tribune, e 23 emissoras de TV), a Hearst Newspapers (que detém 15 diários, entre eles o Houston Chronicle e o San Francisco Chronicle) e ainda a Gannett (dona de 82 diários, o USA Today entre eles). Cada uma destas quatro empresas entrou na aventura investindo 1,9 bilhão de dólares. Ou seja, não faltou investimento. Mas a coisa desandou. Talvez a razão do insucesso tenha sido a soma do investimento (que se mostrou pequeno), baixa paciência e mínima reflexão estratégica. Conforme foi noticiado no dia do fechamento da rede, os parceiros do consórcio estavam brigando inclusive por causa do investimento que seria necessário daquele momento em diante.

Qual a situação da indústria jornalística norte-americana atualmente?

C.T.C.– Aquilo que a gente chama de indústria jornalística tradicional não vai muito bem. Os últimos números aos quais tive acesso, do primeiro semestre do ano passado, mostravam que o Google sozinho faturava mais publicidade do que todos os jornais americanos juntos e todas as revistas americanas. Os jornais estão sofrendo com a queda de assinaturas e a queda da venda avulsa. Falo, obviamente da imprensa de qualidade, não estou falando nem de jornais gratuitos que também sofreram muito, em especial na Europa. Mas a maioria começa a adotar os paywalls no estilo do New York Times.

Ken Doctor, um dos maiores especialistas sobre a mídia digital, criador da expressão “newsonomics”, acha que o paywall é uma das razões para se ficar otimista. Ele diz que os paywalls provaram que os leitores vão pagar para ter acesso digital. Ele também dá o número: acesso digital gratuito agora está restrito de alguma forma em mais de 500 diários em todo o mundo.

Voltando ao Brasil, Pensando agora nos jornais de menor porte. Suas respostas valem para eles também? Em que medida?

C.T.C.– Valem e valem muito. Em especial na questão da rede e na questão dos serviços de valor adicionado para as comunidades locais. Mas será preciso investir em tecnologia.

Centros acadêmicos como a Graduate School of Journalism, de Columbia estão refletindo e pesquisando sobre o assunto? De que maneira?

C.T.C.– Há vários centros importantes, como o de Columbia – que produziu o mais importante relatório até agora sobre o jornalismo na era digital, aquele intitulado “Post-Industrial Journalism – Adapting to the present” e cuja tradução foi publicado pela Revista de Jornalismo da ESPM. Mas centros como o Pew Research Center, o Knight Center for Journalism in the Americas e o Nieman Journalism Lab tem tido produções fantásticas sobre o assunto.

Você é professor de “Mídia, Informação e Comunicação na Era Digital” no MBA em Jornalismo e Mídia na Era Digital da ESPM-SP. Como essas questões são tratadas no meio acadêmico e profissional brasileiro?

C.T.C.– Acho que há um vácuo no Brasil nesta área. Na academia, a preocupação tem se dado em relação às questões de conteúdo, de redes evidentemente, mas muito pouco em relação à modelagem do negócio da comunicação. Há exceções, é claro, como os trabalhos da professora Elizabeth Saad Corrêa. Na imprensa, a coluna de Nelson de Sá, na Folha de S.Paulo, e os artigos de Luciano Martins Costa, na internet, costumam abordar estes assuntos.

Você é autor de vários livros, entre os quais Ética, jornalismo e nova mídia – uma moral provisória. As transformações pelas quais está passando a indústria jornalística têm uma dimensão ética? Se há, sob que aspectos?

C.T.C.– Sim, sem dúvida que a dimensão ética está presente em toda a sua plenitude. Principalmente num momento em que o jornalista passa a concorrer com pessoas que não são jornalistas, mas mesmo assim estão produzindo informação e esta informação concorre com aquela que é tratada tecnicamente. A questão ética, fundamental no jornalismo, se espalha hoje para toda a humanidade que tem às mãos este poderoso meio de comunicação que é a internet.

Quando será publicada a íntegra da pesquisa?

C.T.C.– A pesquisa sai na edição de abril (na íntegra) da Revista de Jornalismo da ESPM (edição brasileira da Columbia Journalism Review) e logo mais estará disponível na internet, no próprio site da revista.

Como os jornais brasileiros estão recebendo os resultados desta pesquisa?

C.T.C.– Dei algumas entrevistas (para o Meio&Mensagem, para o Valor Econômico) e fiz uma apresentação para a diretoria da ANJ. Alguns jornais se interessaram em aprofundar a discussão e estou sendo convidado para apresentar a pesquisa para suas equipes. Em princípio, estão gostando do que ouvem. Quero muito ver se farão as mudanças necessárias para enfrentar estes tempos bicudos. Estou disposto a ajudar no que for possível.

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Carlos Müller, do Jornal ANJ