‘Chega a ser folclórica a dificuldade que os jornalistas têm com os números. Alguns supõem que, ao optar pela faculdade de jornalismo, deixarão de ser assombrados por eles na vida profissional. Estão 100% errados. Lidar com números faz parte do cotidiano das redações. Acompanhando comportamento dos preços, analisando as estatísticas de venda do comércio, escrevendo sobre reivindicações salariais de uma categoria ou interpretando pesquisas – cada vez mais usadas pelos jornais – eles terão de ser enfrentados.
É com certa freqüência que se vê em jornais afirmações parecidas com estas: ‘O preço do produto xis está 100% mais baixo’; ‘no ano, os trabalhadores perderam mais de 150% em seus salários’; ‘usando gás natural em vez de gasolina, o motorista economizará 130%’; ‘vendas no comércio caem mais de 100%’. Um produto não pode ter desconto de 100%, pois o comerciante teria de entregá-lo de graça; trabalhadores não podem perder 100% ou mais, pois não receberiam salários ou pagariam para trabalhar; o gás natural não pode ser 130% mais barato em relação à gasolina, pois o motorista encheria o tanque e ainda levaria dinheiro para casa; não se pode vender menos do que nada, portanto, as vendas no comércio podem cair, no máximo, até 100%, o que já seria a estagnação absoluta.
Recentemente, em uma notícia sobre Camocim, O Povo entrevistou a representante de um empreendimento turístico na cidade e, segundo a afirmação que ela fez ao jornal, o negócio criaria ‘trinta mil empregos diretos’. Escrevi no comentário interno que aquilo parecia um evidente exagero, pois é muito difícil qualquer empreendimento na área de lazer criar tal número de postos de trabalho, em um só local. Verifiquei no portal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o número de habitantes de Camocim: 58.213 pessoas (estimado em 2005). Ou seja, uma única empresa seria capaz de empregar praticamente toda a força de trabalho da cidade, considerando-se que entre os habitantes existem crianças e aposentados. Mas, como muitos já devem estar empregados, ela teria que importar trabalhadores de outros locais. Pedi à Redação que fizesse a checagem para verificar se o repórter reproduzira a declaração corretamente ou para confrontar a entrevistada com a realidade, se fosse o caso, mas ficou por isso mesmo.
Pesquisas
Na edição de 21 de março ao ler o título ‘Fortalezense prefere sair pouco sem gastar muito’ (editoria de Economia), fiquei surpreso. Sempre tive a impressão que em Fortaleza se vai muito a praias, bares e restaurantes, lugares sempre cheios, principalmente nos fins de semana, mesmo fora do período de férias. A manchete da página se escorava em uma pesquisa O Povo /Ultradata, pensei, portanto, que a minha impressão se baseava em um equívoco – o que meus olhos viam não se traduzia na realidade dos números.
Mas, ao começar a ler a notícia, percebi que omissões na reprodução, erro de interpretação da pesquisa e alguns equívocos no questionário submetido aos entrevistados, invalidavam o título e tornavam obscuro o conteúdo informativo. A primeira informação que surge no início da matéria é que ‘39,6% das pessoas saem poucas vezes por mês’. Além de o conceito ambíguo ‘poucas vezes’ (quantas seriam?) não estar explicitado, o redator não revela para os leitores, em nenhum momento do texto, o que acontece com os outros 60,4% dos habitantes em relação aos hábitos de lazer.
Na tabulação da pesquisa, que pedi para ver, a questão relativa ao trecho descrito é a seguinte: ‘Quantas vezes costuma sair para se divertir’. As respostas: ‘Poucas vezes por mês’ (39,6%); ‘Uma vez por semana’ (28,1%); ‘Mais de uma vez por semana’ (19,5%); ‘Nunca sai para se divertir (11%); ‘Não sabe/não respondeu (1,8%)’. A primeira coisa que salta aos olhos é: os que saem uma vez e aqueles que saem mais de uma vez por semana para passear somam 47,6%, ou seja, os que saem ‘muito’ superam os que ‘saem pouco’ (39,6%). É ainda de se levar em conta que a questão ‘nunca sai para se divertir’ teve 11% das respostas, a menor freqüência, à exclusão dos que não responderam ou não souberam informar sobre seus hábitos de lazer. Apesar dessas evidências, a forma como foi escrita a notícia leva a concluir que a maioria dos fortalezenses não gosta de sair para se divertir. Para reforçar a tese equivocada, há dois depoimentos destacados de pessoas que preferem ‘receber os amigos em casa’.
Quanto à pergunta do questionário, parece incorreto, na abordagem ao entrevistado, misturar um conceito mais preciso nas respostas possíveis (por exemplo, especificando o número de vezes que a pessoa sai em determinado período), com outro vago, como ‘poucas vezes por mês’, ou ‘sai pouco’, como traduziu o responsável pela redação da notícia. Há algumas outras falhas tanto na pesquisa como no texto. Mas isso basta para mostrar que os números, por si só, pouco dizem, ou pior do que isso: a exemplo das palavras, eles também podem ser distorcidos.
Camisinha
No mês passado, outra manchete do jornal, baseada em pesquisa O Povo /Ultradata ficara dúbia devido à interpretação que a Redação fez dela ou pela falta de cruzamento entre as respostas da pesquisa sobre hábitos sexuais dos jovens. Destacada no alto da capa, a manchete anunciava: ‘46,8% dos jovens usam camisinha’ (26/2). Porém, deixou de se informar se os jovens que declararam usar preservativo tinham ou não vida sexual ativa, pois somente assim o enunciado faria sentido.
Para Fabrizio Caritatos, da Divisão de Pesquisas da Ultradata, o objetivo das enquetes é ‘dar caminhos para matérias jornalísticas e enriquecê-las no seu conteúdo com dados factuais’. Portanto, não seria o propÃsito ‘de uma pesquisa editorial esclarecer tudo sobre determinado assunto; é um tipo diferente daquelas que empresas adquirem para avaliar seus clientes, seu mercado, seus concorrentes, etc’. Segundo ele, as perguntas dos questionários são sugeridas pela Redação do O Povo.
Marcos Tardin, diretor-executivo da Redação do O Povo, reconhece a existência ‘de um problema real’ a ser resolvido com relação às pesquisas e quanto à forma de interpretá-las e de redigi-las. Ele diz que buscará uma ‘interação maior’ entre o jornal e a Ultradata, inclusive propondo a revisão técnica das perguntas sugeridas pelas editorias.’