Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Na Redação da ‘Última Hora’

Na tarde de primeiro de abril de 1964, passei pela sede de Última Hora, na Rua Sotero dos Reis, perto da Praça da Bandeira, onde hoje, parece, funciona a zona do meretrício. Tinha ficado até a madrugada na Redação e voltava, já ciente de que o golpe fora dado. O prédio estava fechado e um motorista da garagem em frente, que guardava os jipes do jornal, me avisou que ele iria ser empastelado: um animador de auditório conclamava, havia horas, ao vivo, na TV, asseclas para a tarefa. A caravana, armada e barulhenta, passou por mim, eu saindo, eles entrando, justo no ponto em que a rua cruza por debaixo a estrada de ferro.

Dei longa volta pela cidade do Rio de Janeiro. Em alguns pontos da Tijuca, morada tradicional de militares, havia comemorações, euforia e bandeiras nacionais nas janelas. Também em algumas ruas da Zona Sul – mais Leblon que Copacabana – onde vivia gente abastada. Mas no resto da cidade – ao longo da Avenida Suburbana, pelos bairros da Central, da Leopoldina, da Penha a Madureira, lugares em que me crei e vivi – era um por de sol silencioso de ruas vazia e lojas fechadas.

Enquanto eu passeava e testemunhava, a expedição empasteladora invadiu o prédio de Última Hora e alguém deu um tiro na porta de vidro que ficava em frente a corredor de entrada, revestido de madeira cor de mogno. O vidro era a prova de balas (a sala fora usada em outros tempos como pagadoria) e o tiro deve ter ricocheteado, porque, quando voltei à noite, havia um pouco de sangue no chão. Subiram as escadas, quebraram tudo na Redação, mas não chegaram ao terceiro andar, onde ficava a contabilidade e as salas da diretoria do jornal porque a escada era protegida por portas pantográficas. Foi lá que produzimos a edição do dia 2, quatro páginas com matéria neutra.

“Vai durar…”

O jornal só rodou porque a malta de invasores, suponho que assustada com o ricochete no vidro, deixou de atravessar outra porta, logo adiante, à esquerda de quem entrava, também envidraçada, mas sem qualquer proteção: atrás, ficavam as linotipos, as ludlows, as mesas para as ramas e tudo mais necessário para a composição tipográfica. A impressora rotativa estava instalada no subsolo de outro prédio, na Avenida Presidente Vargas, construção modernosa erguida no início da década de 1950 para abrigar o Diário Carioca.

Tudo parecia muito incerto. Mas, dias depois, numa calçada da Avenida Rio Branco, quando ainda se ouviam em ondas curtas rádios do Sul tentando organizar alguma resistência sob a liderança de Leonel Brizola, João Saldanha, entendido em muito mais coisas do que futebol, me disse: “Isso vai durar uns vinte anos”.

De fato, a inteligência do país demorou para despertar – de alguns dias, como lembra esse texto, até muitos e muitos meses – e iria pagar por isso nas prisões da ditadura.

******

Nilson Lage é jornalista