Não existe filme que melhor represente a tragédia social brasileira representada pelo golpe de 1964 que Cabra Marcado para Morrer (1964-1984), de Eduardo Coutinho (1930-2014). Em 1962, Coutinho começou a encenar a trajetória do líder camponês João Pedro Teixeira, morto por capangas de latifundiários em 1962. As filmagens avançavam, com companheiros de João Pedro fazendo seus próprios papéis e a viúva do líder, dona Elizabeth Teixeira, representando a si mesma. Com o golpe, a equipe de filmagem, o diretor e os “atores” tiveram de se refugiar, pois ficaram na mira da repressão. Os negativos das partes filmadas foram escondidos porque a ordem era destruí-los. Dezessete anos depois, já sob a forma de documentário, Coutinho retomou a filmagem, localizou personagens e foi encontrar dona Elizabeth escondida num lugarejo do Rio Grande do Norte. Com o filme, ela retornou à vida, assim como o País retomou a normalidade democrática após um período de 21 anos de ditadura. É a obra-símbolo desse percurso do povo brasileiro, dessa longa noite e de seu desfecho.
Mas é preciso lembrar que o cinema brasileiro respondeu ao golpe ainda no calor da hora, tentando digerir o impensável que fora a derrubada do governo João Goulart em 1º de abril de 1964. O cinema brasileiro acompanhava a fase de otimismo que vinha desde o período JK. Não era uma euforia tola, alienada, mas que despertava para a expressão estética de todo o desajuste social desse país que se mostrava, por outro lado, promissor, ousado e criativo. Se havia Brasília, a bossa nova e a seleção de futebol campeã do mundo, também havia a seca, a miséria nas grandes cidades, o analfabetismo, o abismo entre as classes sociais. Os filmes foram saindo e refletindo essa preocupação dos diretores do Cinema Novo. Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Os Fuzis, de Ruy Guerra, todos realizados entre 1963-64, expressavam essa indignação, mas também a confiança na mudança social que parecia ao alcance da mão.
Nesses anos, o Brasil parecia, tanto à esquerda como à direita, um país à beira da revolução. Todos estavam enganados, e ninguém o sabia. Nesse ambiente, veio o golpe e as obras que surgiram nos anos imediatamente posteriores pareciam destinadas a refletir e digerir o golpe.
É o caso de um título central como O Desafio (1965), de Paulo Cezar Saraceni, que reagiu prontamente à circunstância histórica. O personagem principal é Marcelo, jornalista vivido por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, em sua perplexidade pelo país saído do golpe. Numa das sequências mais fortes, mescla de ficção e documentário, vemos o personagem assistindo ao mitológico show Opinião, espécie de cerimonial da resistência, como o definia a ensaísta Heloísa Buarque de Holanda. Desoladas, as pessoas iam, noite após, noite, ouvir Nara Leão (e depois Maria Bethânia, que está no filme) cantar Carcará, ouvir João do Vale e Zé Kéti. Era uma missa leiga da oposição.
O processo de digestão do golpe gerou um elenco de filmes, e provavelmente uma obra-prima, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, obra de traço alegórico, forte, impulsiva, paradoxal e densa, que procura pensar as estruturas mais profundas da sociedade brasileira e dos motivos que a levaram não à revolução de esquerda, como se esperava, mas ao lado oposto, a um golpe de direita. Entre figuras como o déspota esclarecido, o capitalista, o padre e o político populista, emerge o poeta e jornalista Paulo Martins, criação de Jardel Filho. Sem saber a quem servir, Paulo engaja-se na luta armada e morre numa saraivada de metralhadora. A ação passa-se no imaginário país Eldorado, que, claro, é o Brasil, mas também mescla de todos os países latinos do Terceiro Mundo, submetidos mais ou menos às mesmas circunstâncias históricas.
Amazônia real
Com o fechamento do regime em 13 de dezembro de 1968 com a edição do Ato Institucional nº 5, a censura passa a perseguir de maneira mais ostensiva os artistas e suas obras. Como resposta, estas se tornam cada vez mais herméticas e alegóricas na tentativa de driblar censores e fazer sua “mensagem” chegar ao público. Assim, por exemplo, um diretor de estilo realista e crítico como Nelson Pereira dos Santos, dirige obras tão enigmáticas como Azyllo Muito Louco, 1969-1971 (baseado vagamente no Machado de Assis de O Alienista), e Fome de Amor (1968) e Como Era Gostoso Meu Francês (1970). Em Os Inconfidentes (1972), Joaquim Pedro de Andrade reencena os passos da Conjuração Mineira, baseando-se apenas nos Autos da Devassa, mas aproximando os momentos históricos distintos de luta contra a opressão.
Isso não quer dizer que todos os filmes fossem alegóricos, mas essa era a tendência. Que convivia, por exemplo, com um filme bem mais direto, Iracema – uma Transa Amazônica (1975-1980), de Orlando Senna e Jorge Bodanzky, glosando as mistificações publicitárias do governo e mostrando a real dimensão da miséria do país. A pobre índia, prostituída e abandonada, repete o destino da personagem de José de Alencar que lhe empresta o nome, mas é também a nação ultrajada pela miséria, agora somada à ditadura.
Prá Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, feito ainda durante a ditadura, provocou uma crise política e culminou com a demissão de Celso Amorim, na época presidente da Embrafilme. Retratava o ufanismo durante a Copa do México (1970) e seu contraste com o que acontecia nos porões da ditadura. Muito tempo depois, esse ambiente é trazido de volta no belo e sensível O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger.
Alguns outros filmes captam o espírito da virada para a democracia e tornam-se sucessos. São os casos do documentário Jango, de Silvio Tendler, e da ficção Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, ambos de 1984. No primeiro, temos a reconstituição da época febril do presidente deposto, no segundo, a adaptação do livro-testemunho de Graciliano Ramos sobre sua prisão durante o Estado Novo – uma ditadura falando de outra, a de Getúlio Vargas e aquela que agora estava sendo enterrada pela mesma sociedade civil que, em parte, colaborara para seu aparecimento em 1964.
Figuras reais
Após a democratização, com o país livre do governo autoritário e da censura, era de se prever uma profusão de filmes sobre o período anterior numa espécie de tentativa de digestão de uma época traumática. Seria praticamente impossível citar todas essas obras, sob pena de transformar o texto em lista telefônica. Basta lembrar alguns momentos-chave, tanto na ficção como no documentário.
Algumas figuras reais da luta contra a ditadura foram retratadas com as cores da ficção. Caso, por exemplo, de Lamarca (1994), de Sérgio Rezende, perfil do guerrilheiro saído das próprias forças do Exército e morto em combate com a repressão. Sua companheira, a estudante de psicologia e guerrilheira Iara Iavelberg é retratada em Em Busca de Iara (2013), de Flávio Frederico.
Aliás, a aura romântica do guerrilheiro é figura constante de filmes de ficção da pós-redemocratização. A começar pela visão romanceada do livro de Fernando Gabeira, O Que É Isso, Companheiro?, sobre o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick por grupos armados. Mas contempla títulos de ficção pura, sem relação com fatos reais, como Ação entre Amigos (1998), de Beto Brant, Quase Dois Irmãos (2004), de Lúcia Murat, e Cabra Cega (2005), de Toni Venturi.
Curiosamente, veio da televisão, e não do cinema, uma das mais fortes visões romanceadas da luta armada contra o regime. Com sua história do nascimento da resistência armada no interior do movimento estudantil, a minissérie de 1992 Anos Rebeldes, da TV Globo, conseguiu o que muitos filmes não logram – captar a energia e o clima de uma época em transe. Com muita vibração e atuação intensa do elenco, mostrou às gerações mais novas o que significava ser jovem nos anos 1960, com seus encantos e seus riscos mais que evidentes.
No campo do documentário, há um trabalho constante de recuperação da época e sua reinterpretação. Seja através de personagens como em Marighela (2012), de Isa Grispun Ferraz, sobre o líder da ALN (o grupo armado Aliança Libertadora Nacional), seja sobre eventos específicos, como Barra 68 – Sem Perder a Ternura (2000), de Vladimir Carvalho, sobre a invasão da Universidade de Brasília por forças policiais, ou sobre os sequestros de embaixadores, como em Hércules-56 (2006), de Silvio Da-Rin, ou Setenta (2013), de Emilia Silveira. Ou ainda sobre organizações clandestinas como Operação Condor (2007), de Roberto Mader, sobre o convênio policial entre ditaduras latino-americanas para perseguir opositores.
Receio
Apesar do grande número de filmes desdobrados a partir do tema ditadura, ainda há aspectos a serem explorados. Como diz o grande critico e ensaísta Jean-Claude Bernardet, o cinema brasileiro tem receio de abordar de forma crítica certas instituições, como o mercado financeiro, a Igreja e a iniciativa privada, e o Poder Judiciário. Uma exceção foi Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski, sobre o presidente do grupo Ultragás e financiador da tortura em São Paulo. O próprio Bernardet prepara um filme sobre José Dirceu, líder estudantil durante a ditadura, homem forte do governo Lula e condenado na Ação Penal 470. Da mesma forma, o documentarista Silvio Tendler projeta dois filmes, um sobre os Militares da Democracia, focando membros das Forças Armadas que se opuseram ao golpe, e outro sobre advogados que se arriscaram a defender presos políticos durante do regime de exceção.
Há todo um painel a ser composto e, apesar da força de algumas pinceladas, muito ainda por fazer para que a época da ditadura ganhe retrato consistente do cinema. Longe de esgotado, o tema clama por abordagens mais ousadas e originais. Afinal, muitos dos protagonistas do período estão vivos e nem sempre é confortável mexer em material combustível acumulado em período de exceção extenso como foi o da ditadura brasileira.
A originalidade de abordagem às vezes está em detalhes menores, como no belo filme de ficção de Ugo Giorgetti, Cara ou Coroa (2012), destacando a pequena resistência ao regime. A resistência daquelas pessoas que não pegavam em armas, mas, com o risco da pele, às vezes escondiam essas armas em suas casas, ou ocultavam um militante perseguido, ou transportavam algum material clandestino em seus carros. Foi dessa grande rede de resistência discreta que saiu parte considerável da força que determinou o fim da ditadura. Giorgetti teve a sensibilidade de colocar esses heróis anônimos em seu lugar, na frente do palco.
******
Luiz Zanin Oricchio, do Estado de S.Paulo