Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Pacificar a polícia

O dia em que o Rio de Janeiro acompanhou a ocupação militar na “Favela do Complexo” serve como pano de fundo para a película Alemão, que acaba de entrar em cartaz nos cinemas brasileiros. A narrativa promete mais do que a tensão inicial passou do suspense no ar, transmitido ao vivo. Um sentimento de angústia pela paz aliviada quando a câmera no helicóptero capturava as imagens do alto do morro e simultaneamente a voz do governador no áudio declarava em off: “Estamos vivendo um momento histórico”. Era anunciado o sucesso da operação. Os bandidos teriam fugido. Vou ver esse filme.

Passados 6 anos desde a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, em muito tem se creditado à figura do secretário de Segurança a iniciativa e gestão contra a criminalidade e a violência. Considerando que a gestão do comércio de drogas é, principalmente, exercida dentro das favelas, as UPPs entraram para desarmar o narcotráfico. Entretanto, o armamento que chega às favelas não conta com a conivência policial?

Qualquer semelhança é mera coincidência com os filmes Tropa de Elite I e II, com a corrupção da segurança pública fluminense. Assistimos à impunidade caminhar livremente entre o crime e a legalidade. Por ter denunciado a "banda podre" da polícia, em 2000, o subsecretário de Segurança, Luiz Eduardo Soares, foi exonerado do cargo pelo governador num programa jornalístico, ao vivo. Algum tempo depois, foi noticiado que a 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro condenou, por formação de quadrilha, o então governador Anthony Garotinho. Seu chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, também foi acusado de fazer parte da quadrilha que aparelhava o jogo do bicho.

Direitos constitucionais

Dessa vez, vejamos, o combate à criminalidade foi medido pela força e presença militar nas favelas; sendo assim, as UPPs se transformaram na “galinha dos ovos de ouro” do atual governo e conta pontos (e votos) para qualquer programa ou promessa eleitoral, ainda que polícia não gere votos, segundo informara José Mariano Benincá Beltrame. Dessa vez houve vontade política para as UPPs, o que não ocorreu com o Mutirão pela Paz e Grupamento de Polícia em Áreas Especiais (GPAE). O modelo de polícia comunitária é o mesmo, só mudou o nome.

Beltrame desde o início sempre falou e, continua dizendo, que somente a polícia não cumprirá o papel de garantir qualidade de vida nos morros. Outras funções sociais do Estado, como esporte, lazer e cultura, complementam a formação da cidadania. Sozinhas, as organizações não governamentais existentes nas comunidades em prol da população negligenciada não darão conta do recado. Entretanto, afirmar que o Estado é ausente numa área de risco é um equívoco. O tráfico e a milícia são tidos como poder “paralelo" do Estado, quando na verdade são uma simbiose. Nosso novo recorde de bilheteria do cinema é uma caricatura da organização do crime, gestada pelos colarinhos brancos.

Outros filmes também importantes como Morro dos Prazeres5 x UPP e Domínio Público documentam esse tipo de ocupação em seu paradoxo. A presença de uma polícia que nunca foi bem vista por favelados e vice-versa. Essa desconfiança mútua caminha lado a lado, até esbarrar num beco. Uma via de mão dupla começa por um diálogo sobre uma polícia que faça a proteção do povo e não do Estado, que possa prevenir ao invés de reprimir. Que transmita confiança em vez de olhar com cara feia. Essa polícia, apêndice das Forças Armadas, institucionalizou a violência sistêmica contra os pobres como manutenção do ideário da lei de Segurança Nacional. Uma nação conformada e sem voz.

A música de protesto Cálice foi adaptada pelo rapper Criolo, em nossos dias, e vemos a denúncia de um aparato como vertente do racismo estrutural, ideologia desde a fundação da própria polícia enquanto Divisão Militar da Guarda Real (DMGRP) ao tempo da monarquia. Um conceito camuflado por uma pátria cujo autoritarismo militar vilipendiava qualquer sentimento de inclusão social e, principalmente, outro sistema político.

Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz de 1980, define como “democratura” quando a troca de poder democratiza apenas a política, com eleições. Como ferramenta da desigualdade, o braço armado do Estado reprime qualquer tentativa de justiça social para manter a “mão de ferro” essa estrutura de classes. Visando por as atribuições dos agentes de segurança na ordem do dia, de um novo tempo que se entende como redemocratização, porém, não foi estendido à segurança pública, a Proposta de Emenda Constitucional 51 (PEC-51) é o instrumento legal para todos os efeitos. Resquício da ditadura militar, a polícia precisa ser transformar em outra. Reconhecida e valorizada, desmilitarizada e uniformizada, democratizada e salvaguarda de nossos direitos constitucionais. A categoria policial que a defende chama de PEC da Paz. Se ela não for aprovada, veremos quem legitima a violência.

Recorde de mortes

A propaganda da violência como espetáculo do cotidiano faz dos policiais os atores principais. Observando a imprensa, percebemos um redimensionamento da realidade, já que no noticiário a mesma notícia se repete outras vezes. Talvez para tornar o plano-sequência da ação ainda mais emocionante. Ou talvez numa tendência de maquinar o senso crítico do público que consome informação numa visão maniqueísta do mocinho e do vilão, que vigora como dicotomia, sendo a troca de tiros “entre policiais e traficantes” a representação da luta do bem contra o mal.

Atual comentarista de segurança na TV eex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), Rodrigo Pimentel, em depoimento ao documentário Notícias de uma guerra particular, admitiu que estava cansado desse trabalho e que não via luz no fim do túnel. Saindo do debate acadêmico, cartazes e faixas pedindo o fim da Polícia Militar se tornaram populares nas ruas durante as manifestações de junho de 2013. Entre outras palavras de ordem, a unidade era por uma democracia ampla, e não restrita a uma parcela específica da sociedade. Por acaso, condiz a narrativa conjunta do best seller Tropa de Elite de que “não existe democracia sem polícia”. Diversos movimentos sociais, ONGs e a sociedade civil assinam agora o manifesto “Queremos ser felizes e andar tranquilamente na favela”.Caríssimas autoridades, José Eduardo Cardozo e José Beltrame, só pedimos um pouco mais de competência.

Por um lado oficial o governo busca a verdade sobre os desaparecidos políticos e por outro, num espaço de tempo que coincide em 30 anos com o retorno à democraica, uma jovem geração vem sendo torturada, morta ou presa indiscriminadamente. Recorte da exceção, a censura passou a ser a lei do silêncio. A nação brasileira, frente ao mundo inteiro, possui uma corporação militar responsável pelo maior número de mortes de civis. Quanto ao encarceramento, fica atrás apenas dos EUA e da China. Há quem acredite que aqui é um paraíso da democracia racial. Por um Brasil em paz é crucial pacificar a polícia.

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Paulo Mileno é ator