Há vinte anos, confiando num delegado falastrão, em mães convencidas de que seus filhos sofriam abusos sexuais, em depoimentos de crianças pequenas induzidas a confirmar aquilo que os interrogadores buscavam, a imprensa destruiu a Escola Base, liquidou a vida profissional e familiar de seus diretores e funcionários, passou por cima da reputação de pessoas que não mereciam os ataques que sofreram. Já muito se falou sobre o caso Escola Base, mas no fundo de tudo há um único problema: a imprensa, que deveria desconfiar, confiou.
Houve mil pedidos de desculpas, indenizações, justificativas, mas a questão principal continua de pé: se um delegado ou um promotor diz qualquer coisa, muitos jornalistas e seus empregadores ajoelham-se gritando “Caramuru!” e publicam aquilo que lhes for entregue. Não houve apenas a Escola Base: muito tempo depois, descobriu-se que o mais feroz procurador da República, Luiz Francisco Fernandes de Souza, que por andar com ternos malfeitos e circular num Volkswagen velho ganhou fama de implacável defensor das causas populares, copiava em suas acusações textos gerados em escritórios de advocacia que defendiam interesses contrários aos dos alvos do procurador. A revista eletrônica Consultor Jurídico comprovou este hábito de Sua Excelência – que, logo depois, preferiu mergulhar no silêncio dos gabinetes e abandonar a exposição às câmeras de TV. Mas a imprensa seguiu confiante, acreditando sempre em autoridades – até em algumas que, para obter maior notoriedade, apresentaram-se publicamente como juízes, sem sequer pertencer ao Poder Judiciário.
Este colunista gostaria de lembrar que imprensa não é PT nem PSDB; não é acusação nem defesa. Não tem obrigação de criticar ou de elogiar só porque outros estão elogiando ou criticando. Imprensa é imprensa; sua função é buscar os fatos reais. Ou seja, divulgar aquilo que não querem que divulguem.
A moda agora é Pasadena – um caso, a propósito, esquisitíssimo, e que deve ser destrinchado. Sem querer julgar o que houve, a simples multiplicação dos preços é um indício de que há algo a investigar. Abreu e Lima também está na moda: um orçamento pular de 2,5 bi para 20 bi não deveria ser considerado normal. O papel da imprensa não é apenas receber informações de policiais e promotores (a tal ponto que, com frequência, esquece-se de ouvir os acusados e publica somente o que Suas Excelências determinam que seja publicado): é buscar as próprias investigações, que endossem, enriqueçam ou contrariem as que estão sendo movidas pelas autoridades.
O mesmo acontece com as denúncias de propinas e de formação de cartel no setor metroferroviário em São Paulo. Será razoável acreditar que um malfeito tão grande, e aparentemente tão lucrativo, seja da responsabilidade de um único secretário de Estado do governador Mário Covas? Robson Marinho era poderoso, chefe da Casa Civil de Covas, seu amigo particular, o escolhido para ocupar, mais tarde, o cobiçado cargo de ministro do Tribunal de Contas do Estado.
Mas seria seu poder tão grande que pudesse comandar propinas, cartéis, sem dividir nada com ninguém? Para a imprensa, é complicado investigar fatos ocorridos há tantos anos; entretanto, cobrar investigações sobre todo o alto comando do Governo Covas não é complicado – aliás, é obrigatório para quem acredita em jornalismo. Quem é que opinava sobre a legalidade dos contratos, ou de quaisquer atos do Governo? Quem era o encarregado da corregedoria, para zelar pela lisura no cumprimento daquilo que tinha sido contratado? É preciso saber. Não que, obrigatoriamente, tenham feito algo de errado, ou tenham se esquivado de fazer o que deveriam; mas que não paire dúvida sobre as atitudes de quem estava no poder na época de acontecimentos tão escandalosos. O curioso é que nem se tenta inocentar o alto comando covista: simplesmente não se fala sobre ele, ignora-se a existência de pessoas importantes que estavam no governo, entre outros motivos, para assegurar que os contratos fossem legais e corretos e sua execução impecável.
Não se trata, a propósito, de um ataque ao falecido governador Mário Covas. Covas era um homem honrado. Mas um governo não é apenas uma pessoa. Foi em seu governo, por exemplo, que a Febem pagou pelo litro de leite o mesmo preço cobrado em padarias de bairros de classe média alta. Isso para não falar de pequenas empresas bem relacionadas que, certamente pela eficiência que demonstraram na gestão, se transformaram em grandes empresas bem relacionadas.
Os meios de comunicação e os jornalistas não podem ficar esperando, em cada caso, que as autoridades façam seus comunicados, plantem notícias vazadas, entreguem documentos “a que este jornal teve acesso”. Isso é omitir-se; é, mais uma vez, entregar às autoridades o desempenho da função jornalística. De novo, é confiar, quando a missão do jornalista e dos meios de comunicação é desconfiar.
Pergunta de quem não confia 1
Segundo a Petrobras, o preço pago pela primeira metade da refinaria de Pasadena incluía o estoque de petróleo. OK, calculando-se o barril a US$ 100, os 170 milhões de dólares representariam 1,7 milhão de barris – metade do estoque, que deveria, portanto, ser de 3,4 milhões de barris. Considerando-se que a refinaria de Pasadena processa cem mil barris por dia, é normal que carregue um estoque suficiente para dois meses e meio de trabalho?
Pergunta de quem não confia 2
O dono da Astra, empresa que vendeu a refinaria de Pasadena para a Petrobras, é Albert Frère, conhecido como Barão. Segundo a imprensa, é “ligado à área energética do Brasil”. Não chega a ser mentira: o Barão tem 5,3% da GDF Suez. Não chega a determinar os rumos nem da empresa, quanto mais da área energética brasileira. E tem 4% da petroleira francesa Total – uma bela porcentagem, numa empresa muito grande. Mas no Brasil a Total tem 20% do campo de Libra. O que significa que o Barão tem, ali, algo como 0,6%.
Agora vamos tentar adivinhar: quem é que forneceu as informações algo exageradas aos meios de comunicação?
Os bons livros
1. Na minha pele – A escritora Debi Aronis traz as memórias de Samuel Grunspan, sobrevivente do Holocausto. Grunspan perdeu toda a família nos campos de concentração nazistas, sobreviveu a cinco anos de trabalhos forçados e reconstruiu a vida em São Paulo, como peleteiro. O livro, em que pela primeira vez conta sua história, sai dia 9/4. Livraria da Vila do shopping Higienópolis, SP.
2. Os segredos do marketing político – O professor George Melão, estudioso sério e competente, traça e analisa os cenários eleitorais deste ano nos Estados e no Distrito Federal. Já nas livrarias.
3. O húngaro que partiu sem avisar – O Húngaro era um professor de música, um homem de idade que se esfalfava o ano inteiro para fazer com que a banda da Escola Municipal não tivesse um desempenho tão desastroso no fim do ano. Um dia, ele desapareceu – e as buscas revelaram coisas fantásticas, dos tempos da Alemanha nazista, dos campos soviéticos de concentração, do Congo. Um livro fascinante, delirante – e seu autor é Marcelo Antinori, um economista frio e racional, que mora hoje em Washington e por muitos anos trabalhou no Banco Mundial e no Banco Interamericano de Desenvolvimento. Lançamento dia 2/4, às 18h30, na Livraria da Vila, rua Fradique Coutinho, 915, SP.
Os bons filmes
Não, nada de blockbusters: aqui falamos da Ciranda de Filmes, encontros sobre Cinema e Educação, com filmes e bate-papos com educadores e cineastas. Começou no dia 31/3, vai até 3 de abril, no Cine Livraria Cultura, sob a curadoria da cineasta Fernanda Heinz Figueiredo e da diretora do Grupo Espaço de Cinema, Patrícia Durães. São mais de 30 filmes, nacionais e estrangeiros, exibidos sempre às 9h, 11 e 14h, até o dia 3; e Rodas de Conversa, sempre às 16h. Os ingressos devem ser retirados no dia, gratuitamente, com 30 minutos de antecedência. Destaque especial: o filme Sementes do Nosso Quintal, premiado em 2012 pelo público na Mostra Internacional de Cinema como o melhor documentário brasileiro. É uma realização de Fernanda Heinz Figueiredo, produzido e finalizado pela Aiuê Produções, com apoio do Grupo Bandeirantes de Comunicações.
Como…
De um grande jornal impresso, de circulação nacional:
** “(…) abriu uma apuração administrativa à época para apurar a ‘violação do citado sigilo’”.
Pelo jeito, apuraram-se para apurar a apuração, garantindo que fosse pura.
…é…
De outro grande jornal, edição virtual:
** “Faça o login se você já é cadastro ou assinante”.
Este colunista é assinante. Ainda bem: detestaria transformar-se em cadastro.
…mesmo?
Do noticiário de internet sobre o lote de vacinas contra HPV recolhido por causar reações adversas:
** “Após ser medicadas, seis meninas passaram mal”.
Só que as meninas foram medicadas exatamente porque passaram mal com a vacina.
Não notícia
A coisa até que começou com boas intenções: em vez de carimbar num detido o carimbo de culpado, os meios de comunicação usavam a expressão “acusado de”, ou “suposto criminoso”. Mas o uso se ampliou: o suposto passou a ser uma espécie de escudo para evitar processos e para não ter de mergulhar fundo na reportagem. E chegamos aos dias de hoje: digamos que o cavalheiro seja um poço de saúde, um cavalo de forte, que acaba de correr 48 km e está inteiraço. A reportagem dirá que ele “supostamente respira”.
Veja esta:
** “O ex-jogador (…) foi preso em Salvador sob suspeita de não pagar pensão alimentícia.”
Suspeita? Ou pagou ou não pagou. Qual a suspeita possível?
Frases
>> Do jornalista Fred Navarro: “Os novos ministros de Dilma lembram muito os velhos ministros de Dilma: ninguém sabe quem são.”
>> Do portal Brasilianas: “Dilma já chamou os advogados do Fluminense para reverter o rebaixamento determinado pela Standard & Poors.”
>> Do jornalista Palmério Dória: “Ninguém pode negar que a candidatura de Eduardo Campos é uma parada.”
>> Do jornalista Cláudio Tognolli: “Simpatia pra fazer patrimônio sem ter capital compatível: consulte o seu deputado.”
>> Do jornalista Chico Dias, citando Millôr Fernandes: “Corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil.”
E eu com isso?
E aqui, além do arco-íris, entramos no mundo em que os sonhos se tornam realidade. A gente não tem nada com isso, mas faz bem relaxar um pouco das notícias desagradáveis e mergulhar no universo mágico de artistas e famosos.
** “Juju Salimeni faz selfie e expõe o tanquinho do namorado ao fundo”
** “Gwyneth Paltrow posa sem make”
** “Gisele Bundchen usa biquíni com estampa de leopardo”
** “Kim Kardashian mostra o corpo em vestido transparente”
** “Antônia Morais troca carinhos com namorado em São Paulo”
** “Shakira chama a atenção por deixar as pernas à mostra em show”
** “Após separação, Eliana leva o filho ao teatro”
** “Lauren Conrad diz que a cama é para dormir e fazer sexo”
** “Filha de Sheila Melo festeja seu aniversário”
** “Kate Middleton compra tapetes para casa”
** “Letícia Birkheuer curte praia com o filho no Rio”
** “Jennifer Aniston não aguenta mais que falem sua idade”
O grande título
A variedade é grande. Podemos começar com aquele título que não coube no espaço, mas o redator gostava dele e botou assim mesmo:
** “Violino Stradivarius de mais de R$ 11 milhões é roubado nos”
E continuar com uma manchete que não combina nada com nada:
** “Neném sem bebê – Namorada da cantora não está grávida e faz tratamento de inseminação artificial”
O portal desmente discretamente a notícia que tinha dado anteriormente, sobre a gravidez da moça.
Há também um título excelente sobre a expansão do autoritarismo no mundo:
** “Figurino de Beyoncé foi detido pela Alfândega”
Que terá feito o pobre do figurino para ser detido? Terá tentado contrabandear sua dona, escondida em seus (transparentes) tecidos? Quanto pagou de fiança?
E o grande título, que saiu primeiro no portal de um grande complexo noticioso e, de tão apreciado, foi repetido no jornal impresso do grupo:
** “Cabeça achada na Sé é de corpo esquartejado”
Ainda bem: se o corpo se mantivesse intacto, onde estaria a cabeça?
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Carlos Brickmann é jornalista