Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saudosa maloca

Igualzinho a você, tenho aqui uns planos que, embora modestos, nunca vou realizar. Cadê ânimo para ir às vias de fato? Mais fácil pastorear devaneios no ar, como o Drummond fazendeiro, do que correr o risco de descobrir que era tudo mais ou menos bobagem. Um pouco como a botequinesca figura do cineasta passivo, com uma ideia genial na cabeça e nenhuma câmera nas mãos.

Nunca tive uma ideia genial, e também sou ruim de câmera, mas volta e meia reincido na ruminação de alguma coisa que provavelmente jamais escreverei. Por exemplo, um artigo que se chamaria “1979, o ano em que tudo terminou” (título sacado pelo Nirlando Beirão), e que meus neurônios voltam a regurgitar nestes dias em que tanto se fala e escreve a propósito do cinquentenário do golpe de 64. Outra vez me dá vontade de repassar três momentos cruciais de 1979.

Dois deles talvez interessem mais aos jornalistas do que aos seres humanos normais. É daquele ano a derrocada duradoura, senão definitiva, de algumas ilusões – uma das quais, em maio, levou a maioria dos profissionais da imprensa de São Paulo a se precipitar numa greve desastrada e desastrosa. Tínhamos a certeza de contar com a adesão dos gráficos, pois, afinal, na luta de classes que opõe trabalhadores e patrões, estávamos na mesma canoa.

A adesão não veio, sinal de que até canoa tem primeira e segunda classe, e foi pelos jornais que acompanhamos o fracasso do movimento cujo êxito dependia de não haver jornais nas bancas. Lembro-me de ter entrado num ônibus, de madrugada, e arengado para uns gatos pingados que voltavam do trabalho: Não comprem jornais! – concitei, sem obter que um único músculo se movesse no semblante exausto do proletariado. Agora é que esses caras vão correr para a primeira banca – concluí, dando por encerrada minha carreira de tribuno. Lembro-me também de meia dúzia de piqueteiros amanhecendo na Marginal do Tietê quando a greve estertorava, um deles, cheio de graça e conhaque, com um megafone apontado em direção ao prédio onde funcionava a Veja: “Atenção, Editora Abril, vocês estão cercados!”

Meses depois, vi esfarinhar-se outra ilusão que não era só minha – a de que bastava reunir gente talentosa e idealista para criar, com pouco mais que nada, um bom jornal, indispensável naquele momento em que a anistia, prestes a ser promulgada, assinalaria o começo do fim da ditadura. Em torno de Mino Carta formou-se um timaço de que faziam parte, entre outros, Claudio Abramo, Roberto Pompeu de Toledo, Ricardo Kotscho e Paulo Markun, além do citado Nirlando.

Não durou seis meses o Jornal da República. Pouquíssimas semanas depois da edição inaugural, de 27 de agosto, o sócio capitalista tirou o time, esvaziando bruscamente os corpos cavernosos que, no limiar da idade madura, mantinham de pé nossa quimera.

Se atualizassem ao menos a linguagem…

Por essa época, exatamente, meados de 1979, vivemos todos, jornalistas e seres humanos normais, o terceiro momento marcante a que me referi – a anistia caolha que ainda hoje tentamos digerir.

Em meio à alegria do retorno dos exilados (lembro-me de Leonel Brizola, com seu terno jeans, visitando a redação do Jornal da República, por onde passou também Fernando Gabeira com um modelito de derrubar os queixos), pôde-se por fim desatar o laço que por anos mantivera promiscuamente empacotadas as mais incompatíveis correntes da esquerda nacional.

Uma trincheira (usava-se terminologia bélica) desconfortável, sobretudo porque nela, em nome da unidade sem a qual não derrotaríamos a ditadura, não havia espaço para a dissensão, para o diálogo democrático. Éramos, nesse aspecto, de uma rigidez cadavérica. E eis que de repente estávamos libertos da amarra, cada qual entregue a si mesmo, para o bem e para o mal, uns e outros procurando espaço e uns tantos se estranhando na nova paisagem: o que é isso, companheiro?

Passou? Nem tanto: 35 anos depois, tropeço ainda em ex-combatentes nostálgicos dos bons tempos (a ditadura, acredite) em que, jovens e puros, nós nos irmanávamos na mesma trincheira da luta pela liberdade. Se esse pessoal atualizasse ao menos a linguagem…

E a tal conversa sobre 1979, o ano em que tudo terminou? Desconfio que termina aqui.

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Humberto Werneck é colunista do Estado de S.Paulo