Os provedores de acesso à internet terão de oferecer a todos os usuários a mesma velocidade de conexão, cobrando deles o mesmo preço, qualquer que seja o conteúdo acessado. É o princípio da neutralidade da rede. As exceções – em razão de requisitos técnicos ou para privilegiar serviços de emergência – serão regulamentadas por decreto presidencial, ouvidos a Anatel e o Comitê Gestor da Internet, com base no artigo 84 da Constituição, para que se limite à “fiel execução da lei”. Essa é a mais auspiciosa norma do Marco Civil da Internet, que define os direitos e deveres dos participantes do sistema – empresas de telecomunicação, fornecedores de conteúdo, internautas e governo.
A “Carta da Internet” foi aprovada anteontem à noite por aclamação na Câmara dos Deputados, depois de dois anos e meio de debates, manobras e conflitos de interesses, e cinco meses depois de bloquear a votação de outros projetos na Casa. A proposta, de iniciativa do Planalto, depende agora da aprovação do Senado. A presidente Dilma Rousseff espera poder sancionar a lei antes de 23 de abril, quando começará em São Paulo uma conferência internacional sobre governança na rede. Para o relator da proposição, deputado Alessandro Molon, do PT do Rio de Janeiro, ela “assegura a liberdade que o usuário já tem na rede” e “consolida a posição do Brasil nesse campo”.
De fato, um dos primeiros defensores estrangeiros da proposta foi ninguém menos que o físico britânico Tim Berners-Lee, o inventor da rede mundial de computadores (www). Outro ponto crucial do texto aprovado é o que restringe a responsabilidade dos provedores pela publicação de material de autoria de terceiros a casos de descumprimento de ordem judicial para a sua retirada. É um ganho para a liberdade de expressão, ao afastar o risco de os provedores se transformarem em censores privados da produção alheia. A regra só não se aplicará, felizmente, à divulgação de material pornográfico que exponha a intimidade de terceiros sem a sua autorização.
Na esfera institucional, destaca-se a precedência da legislação brasileira sobre quaisquer outras, seja lá onde se situar a sede das empresas de internet que prestarem serviços no País. O respectivo artigo substituiu o que exigia a instalação em território nacional dos centros de dados sob a guarda daquelas empresas – um ponto que o Planalto acrescentou ao projeto original depois das revelações sobre a espionagem eletrônica americana também no Brasil. Ao se dar conta de que não havia hipótese de aprovação do item, o governo desistiu desse excesso de zelo, de duvidosa utilidade, aliás, para a salvaguarda da privacidade das comunicações nacionais.
Nesse caso específico, pode-se dizer que se justificava o formidável lobby das empresas do setor junto ao PMDB e seus parceiros do blocão “independente” criado pelo líder do partido na Câmara, Eduardo Cunha, para liquidar ou desossar a proposta inteira. A nacionalização dos centros de armazenamento dos dados dos usuários oneraria desnecessariamente as operadoras de telecomunicação – diversas delas de pequeno ou médio portes. O recuo do governo nessa frente e, mais ainda, a sua desistência de regulamentar a neutralidade da rede por um decreto autônomo, aceitando a modalidade prevista na Constituição, foi a saída honrosa para o oportunista Eduardo Cunha render-se ao projeto sem perder a face.
“A votação só foi possível”, comentaria o político em guerra com a presidente, “porque houve (…) convergência em pontos mínimos.” A isso se chama fazer política. Descendo do salto alto, Dilma deixou de querer impor a sua vontade a uma ponderável parcela da Câmara em surto de autoafirmação, motivada embora pela fisiológica insatisfação com o que receberia do Planalto em verbas e cargos. Bem pensadas as coisas, a presidente até que cedeu pouco para tamanho triunfo que foi a aprovação da neutralidade da rede contra as pressões das teles, interessadas em submeter os usuários às conveniências de seu negócio. Se o Senado ratificar o voto da Câmara, elas não poderão tratar desigualmente os dados que viajam nas suas redes – desfigurando o próprio caráter da internet.