Adiada diversas vezes desde 2011, a discussão sobre o Marco Civil da Internet finalmente saiu da gaveta dos parlamentares que, na terça-feira [25/3], passaram o PL 21626/11, a “carta” com princípios e garantias, direitos e deveres na rede, em votação simbólica. Enquanto o texto caminha para o Senado, Jérémie Zimmermann caminha por Bogotá.
Fora dos bastidores da política brasileira, Zimmermann, ativista francês e coautor de Cypherpunk (Boitempo) com Julian Assange, Jacob Appelbaum e Andy Müller-Maguhn, destaca a América Latina como terreno fértil para discussões mais vibrantes sobre os direitos na sociedade digital – incluída aí a tal neutralidade da rede, expressão intensamente googlada nos últimos dias. “Neutralidade é a universalidade da internet. Quer dizer que todo mundo deve ter acesso a tudo”, define. “Uma ‘Constituição’ própria para a internet? Não sei se é preciso. Afinal, já temos um conjunto de princípios universais. É a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nessa linha, não vejo tanta distinção entre o mundo online e o offline atualmente. É um mundo só”, redefine.
A Zimmermann interessa o teor humano da tecnologia: “Não podemos pensar a tecnologia só por parâmetros econômicos, políticos, técnicos. Devemos pensar em termos de humanidade.”
Fundador e porta-voz do movimento La Quadrature du Net, o ativista se considera um cidadão do mundo, com passaporte francês, vivendo entre aeroportos, conferências e hotéis. Nos últimos tempos, visitou Assange na embaixada equatoriana em Londres, conferiu o projeto Flok Society, em Quito, e o HackBo, em Bogotá. Dias antes de desembarcar em São Paulo, para a CryptoParty e depois para a Conferência Internacional sobre Governança Global da Internet, Jérémie Zimmermann deu esta entrevista ao Aliás.
“Não é hora de cantar vitória”
Após quase três anos de discussões, parlamentares brasileiros aprovaram o Marco Civil da Internet na semana passada. Uma questão simples: por que é importante para um país ter uma legislação específica para a internet?
Jérémie Zimmermann– Nós precisamos garantir direitos e liberdades fundamentais no mundo online. Atualmente, muitos desses direitos, como a liberdade de expressão, estão sendo intensamente desrespeitados, tanto por companhias quanto por governos, mediante restrições comerciais e tecnológicas de acesso. As companhias restringem a internet a partir de interesses comerciais – exemplo clássico acontece quando Google e YouTube aceitam pedidos da indústria cultural para retirar automaticamente certos conteúdos que não lhes agradam por razões financeiras; assim, eles estão limitando a liberdade de expressão. Nos últimos 15 anos, as forças políticas também estão tentando jogar esse jogo, por vezes restringindo e controlando as comunicações na internet – e desrespeitando a privacidade, como vimos no caso da NSA. Por isso, é importante que os países possam contar com uma carta para legislar e garantir a neutralidade da rede, marcar os direitos fundamentais para todos. Nessa linha, não vejo tanta distinção entre o mundo online e o offline atualmente. É um mundo só.
Quão avançada está essa discussão em outros países?
J.Z.– Seria difícil ensaiar um balanço da discussão em âmbito mundial, mas abordarei alguns bons exemplos. Alguns países estão avançando principalmente na discussão sobre a neutralidade da rede. Neutralidade é a universalidade da internet. Quer dizer que todo mundo conectado à internet deve ter acesso a tudo na internet – e pode participar de tudo que quiser. É uma oportunidade aberta para a cultura, a economia e a sociedade. A Holanda foi o primeiro país a estabelecer a neutralidade da rede como lei, em 2011. Depois vieram as experiências de Chile, Eslovênia, Peru. Acredito que o Marco Civil foi idealizado mesmo antes de esses países assinarem suas leis – e não sei por que ficou tanto tempo em discussão. Na América Latina especialmente, vejo uma consciência maior sobre a importância da discussão. Aqui estão as discussões mais vibrantes sobre essas questões tão atuais. Sem esquecer o Equador, que agora aposta no projeto Flok Society, que está muito além de apenas proteger as liberdades na rede, mas pretende pensar uma transição do capitalismo para uma economia social para compartilhar conhecimento com culturas e softwares livres. E sem esquecer o Brasil, já que a presidente Dilma Rousseff foi a única a peitar Barack Obama nas Nações Unidas, após o estouro do escândalo Edward Snowden. Na Europa, estamos prestes a passar por um momento crucial sobre a regulação das telecoms no Parlamento. Por um lado, poderemos conquistar medidas legais para proteger a liberdade de expressão e a neutralidade da rede. Por outro, a depender do teor do texto, poderemos ver instituída uma falsa neutralidade cujas brechas permitirão às operadoras discriminar as comunicações online e usar essas informações para o mercado. Isso será discutido no dia 3 de abril. O timing mostra como a questão é atual. É o momento para mostrar se os europeus estão acompanhando os avanços de outros países, como o Brasil. Nossos parlamentares vão resistir às pressões do lobby das telecoms? Vão honrar seus compromissos com as liberdades fundamentais? Essas decisões políticas têm força simbólica, mas não é hora de cantar vitória ainda. Precisamos olhar para os próximos passos.
“A cultura deve ser livre para ser compartilhada”
Há um paradoxo entre liberdade e regulação na internet?
J.Z.– Não, não há contradição. Os governos devem proteger as liberdades fundamentais de seus cidadãos. É seu dever, legal e político. Aí entra a neutralidade da rede. É uma intervenção do Estado para regular o comportamento das companhias que, por interesses particulares, tende a ameaçar os direitos de seus cidadãos. A liberdade é uma característica cultural, histórica e tecnológica da internet, que foi pensada assim, livre, há 25 anos. Mas, nos últimos 15, as operadoras viram como a tecnologia poderia servir para restringir as liberdades.
O Parlamento europeu rejeitou o projeto Acta em julho. Como você vê a questão do copyright na era digital?
J.Z.– Lutamos por muito tempo contra o Acta, um dos acordos mais escandalosos contra a cultura de compartilhamento na internet. No Brasil, vocês devem compreender essa ideia de cultura, não é? A mistura, o remix, o share, é uma expressão cultural. Compartilhar é parte da cultura contemporânea, criada, inovada, recriada. Mas há uma grande indústria, principalmente nos Estados Unidos, que quer impor sua visão de mundo e pôr preço em tudo. Se aprovado, o Acta seria a maior ameaça à liberdade de expressão online, provocando uma incerteza legal para todos. Nem tudo deve estar sob a ordem de uma política capitalista de copyrights. É preciso reelaborar essas ideias, repensar o que seriam direitos autorais no nosso tempo. Na Europa, a campanha contra o Acta mobilizou milhares de cidadãos, pressionando o comitê europeu a rever a questão do copyright. E mais uma vez: talvez Brasil, Equador, Uruguai poderiam ser terrenos mais férteis para essa discussão. Quem sabe, um dia os direitos autorais se preocuparão em proteger o autor – e não os interesses mercadológicos das companhias. No fim, acredito que a cultura deva ser livre para ser compartilhada, sem visar ao lucro.
“A tecnologia em termos de sentimento e humanidade”
Após a revelação do affairNSA, o Marco Civil considerou exigir que companhias internacionais mantivessem data centersem território nacional.
J.Z.– É complexo. Primeiro, há a questão da jurisdição diante de empresas globais como Google e Facebook, ancoradas em contratos na lei da Califórnia. Não sei se localizar o endereço físico de um servidor é a solução certa, afinal, um cidadão brasileiro poderia ter dados hospedados na Islândia e aí? No fim, a verdadeira questão é que os gigantes – Apple e Microsoft, Google e Facebook – já deram provas de seu estilo: eles fazem o que seus parceiros públicos e privados querem que façam, como mostrou o esquema da NSA. A vigilância global existe sobre tudo e sobre todos, o tempo todo. Que fazer? A essa altura, é preciso garantir que todo mundo compreenda isso. É preciso se informar sobre isso, para repensar nossa própria relação com a tecnologia: as pessoas estão vidradas no Facebook, fascinadas nas vitrines da Apple e seus produtos cool, pensando que isso é ser livre. É? Não. Precisamos compreender que essas ferramentas tão interessantes se tornaram instrumentos de controle e de opressão nas esferas econômica e política. Essa discussão é crucial. Além do Marco Civil, espero que o Brasil viva um esforço político corajoso não só para discutir questões técnicas, mas as tecnologias que deveriam nos permitir ser mais independentes, mais livres, mais plurais.
Como seria uma “Constituição” da internet perfeita? Num mundo ideal, quais seriam nossos direitos? E nossos deveres?
J.Z.– Não tenho certeza se a internet precisa de uma Constituição. Primeiro, isso exigiria um compromisso internacional imenso – e sabemos quão difícil é um consenso internacional e político atualmente. Além disso, não sei se uma nova Carta seria necessária, pois nós já temos um conjunto de princípios universais. É a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que deveria valer no mundo “real” e no mundo digital – quer dizer, como disse antes, é um mundo só. Direitos humanos na sociedade digital, uma capítulo antigo numa sociedade nova. Historicamente, foi um longo caminho para se firmar essa declaração. Ora, opressão e exploração também existem no mundo online. Assim, a defesa da humanidade também deveria ser pensada nessa esfera.
Que futuro você imagina para a internet?
J.Z.– Não posso ler o futuro, mas posso tentar ler o presente. O que inventamos na internet – novas formas de organização e de interação, novas formas de trabalho e de solidariedade – é muito poderoso. O poder econômico e político não pode destruir isso. Esse é o lado mais interessante da tecnologia: sua relação com o humano, com a liberdade humana nas dimensões cultural, intelectual, social. Se a internet for esmagada por esses poderes, o mundo inteiro será também. Quero acreditar que os seres humanos sejam mais inteligentes que isso. Sei que se nos organizarmos e se discutirmos essas questões que impactam em nossas vidas a história será outra. Em diversos países e diferentes contextos, as manifestações dos últimos tempos mostraram que as pessoas podem se organizar, enfrentar ditadores, chacoalhar a geopolítica, exigir direitos democráticos, confrontar a indústria, direcionar tempo e energia para defender seus ideais. Não quero pensar a tecnologia por parâmetros econômicos ou técnicos, mas em termos de sentimento e de humanidade.
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Juliana Sayuri, do Estado de S.Paulo