Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Linguagem e pensamento

Creio que se pode dizer que é só entre leigos que a tese segundo a qual a linguagem expressa o pensamento é uma tese aceita como indiscutível. O que não significa que seja falsa, mas apenas que a versão ‘leiga’ se aplica mais ou menos cegamente e tende a descartar como problemáticas construções que não pareçam conformes à razão elementar (expor textos a comentários fornece uma interessante experiência: quanto menos os leitores são especialistas, mais certezas eles têm).

O português apresenta um conjunto de construções que nenhum linguista considera estranhas, no sentido de violarem regras do sistema da língua, mas que são, vulgarmente, consideradas sem sentido. Pode-se ler isso facilmente em colunas que tratam de língua nos jornais.

Alguns exemplos podem ser: “o governador está previsto para chegar às 14h”, “só fumem nas áreas permitidas”, “meu carro furou o pneu”. Comecemos por este último (ver a coluna “Por que falamos como falamos?“).

O fato mais evidente que aqui se pode verificar é que o ‘possuidor’ (o carro) funciona como sujeito. Quem critica esse tipo de construção dirá que, sendo ‘furar’ um verbo de ação, a estrutura dá a entender que ‘o carro’ é o agente, o que é um absurdo.

A solução apresentada é a de sempre: eliminar tais construções, ensinar o português correto, de preferência fazendo apelo à razão, para que os aprendizes se deem conta de que estão dizendo frases sem sentido.

Acontece que os que empregam essas construções não acham que não fazem sentido. Eles simplesmente as interpretam adequadamente, sabem perfeitamente que essa oração quer dizer que o pneu do carro (um pneu entre tantos…) passou de um estado a outro como consequência de um fato não mencionado. Não se acusa ninguém de ser responsável pelo evento. Muito menos o carro…

O erro está na teoria de interpretação evocada pelos ‘professores’, que supõem que deva haver uma relação direta entre as palavras e as coisas e entre as coisas e a mente.

Sintaxe e semântica

Vejamos o segundo caso: “só fumem nas áreas permitidas” (um aviso que se ouve nas aeronaves, assim que pousam). Se se considerar estritamente a relação entre a oração e os fatos, vê-se logo que a construção não parece literal. Afinal, o que é permitido (ou não) é fumar. Assim, a construção ‘área permitida’ parece estranha; as duas palavras não combinam semanticamente.

A sequência que deriva essa expressão poderia ser representada assim: fumar nas áreas em que fumar é permitido => fumar nas áreas em que [x] é permitido -> fumar nas áreas que é permitido => fumar nas áreas permitidas.

A oração adjetiva ‘em que é permitido’ se reduz ao final a um adjetivo e, assim, concorda sintaticamente com ‘áreas’. Mas essa aproximação sintática não implica necessariamente que a relação semântica seja de predicação ‘profunda’.

Ou seja: a sintaxe não transforma o carro em agente nem a área em permitida. O pneu continua furado sabe-se lá por quê, e é ainda fumar que é permitido em certos lugares.

Finalmente, considere-se “o governador está previsto para chegar às 14h”. Aceite-se como óbvio que a previsão é relativa à chegada, não ao governador. Mas não se pode esquecer que se trata da chegada dele, do governador, ou seja, que ele não está ausente das informações.

Os elementos com os quais o falante tem que lidar são: previsão – chegada – governador. Pode arranjá-los diferentemente, do ponto de vista sintático, sem prejuízo do sentido. Pode dizer:

a chegada do governador está prevista… OU está previsto que o governador chegue… OU o governador está previsto para chegar… Entre outras, claro, como: “a previsão é que o governador chegue”, “a previsão é que a chegada do governador ocorra”…

A construção que merece reparos dos que querem ‘clareza’ e ‘lógica’ é a que predica diretamente ‘previsto’ a ‘governador’. A alegação é que o governador não é previsto, no mundo real, e sim sua chegada. Alega-se que, querendo ‘governador’ na cabeça, que então se deve dizer ‘o governador tem sua chegada prevista…”.

Nada contra, muito pelo contrário. Na hora de ensinar, isto é, nas aulas de português, quanto mais alternativas propostas, melhores serão as aulas. Mas, se o que se quer é tratar de análise, não é bom misturar norma com gosto, preconceito ou teorias que não levam os fatos em conta.

Não se pode impedir que ‘governador’ fique na cabeça da oração. E a consequência dessa decisão é que ‘previsto’ deve aparecer nessa forma, por exigência das regras de concordância.

O erro está em mapear sintaxe e semântica. Em todos os exemplos, o erro está em fazer corresponder diretamente palavras e coisas, coisas e sua representação mental.

A relação de ‘governador’ com ‘previsto’ se explica também por outra hipótese. Estamos acostumados a pensar que as relações entre palavras (numa oração) são do tipo tudo ou nada.

Assim, pensamos em geral que, em casos como “ele anda rápido”, ‘rápido’ é um advérbio e, portanto, se relaciona apenas com o verbo. Mas, se ‘rápido’ se relaciona a ‘anda’ e ‘anda’ se relaciona a ‘ele’, não deixa de haver uma relação (em pontilhado, secundária) entre ‘rápido’ e ‘ele’.

Se a chegada do governador está prevista, quem chega é o governador. Não há como impedir que esse liame ‘psicológico’ seja considerado. Aliás, a frase analisada mostra que ele pode passar para o primeiro plano. É disso que resulta “o governador está previsto”, que está longe de ser uma aberração. Embora não seja a única alternativa, como deveria ser claro.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas