A plateia bem comportada que tomava as poltronas de veludo vermelho do centenário Teatro Solís, no centro de Montevidéu, irrompeu em aplausos entusiasmados quando ouviu o refrão final de Disculpe, o grande sucesso de Los Nocheros, o grupo folclórico patrioteiro que fazia sucesso com a música que a ultradireita do Uruguai assumiu como seu hino anticomunista.
Disculpe si no me entende/ Disculpe si no lo entendo/ Usted habla por la boca de otra gente y yo,/ Y yo soy solo el eco de mi pueblo. [Disculpe. Letra e música de Hugo Ferrari, cantam Los Nocheros. Lado B, segunda trilha do Álbum de la Orientalidad, volume 1, editado pela Dirección Nacional de Relaciones Públicas, DINARP, Presidência do Uruguai, Governo Juan María Bordaberry, 1975. Acesso em www.solanoinfante.com/variedades/mus-albori.html]
O público daquela noite, 25 de agosto de 1975, não podia ser mais fiel: eram generais, oficiais de inteligência e agregados da elite militar de 15 países reunidos nos preparativos da 11º Conferência dos Exércitos Americanos (CEA), que seria aberta dois meses depois. E a atração musical no palco não podia ser mais confiável.
O quarteto de Los Nocheros – três guitarras e um bumbo – teve o seu disco patrocinado pela DINARP, o organismo de propaganda criado logo após o golpe militar civil-militar de 1973. Dois músicos do grupo eram ligados à DNII, a Dirección Nacional de Información y Inteligência, a polícia política patrocinada com recursos da CIA e inspirada no ‘Esquadrão da Morte’ do delegado brasileiro Sérgio Fleury. O quarteto almoçava com frequência com o comandante da secreta Compañia de Contrainformaciones, o braço repressivo do Exército. ELos Nocheros chegaram a cantar na festa de aniversário da unidade militar, instalada num quartel na esquina da calle Colorado e bulevar Artigas, dois quilômetros ao norte do Obelisco, marco turístico de Montevidéu [Victor, J. Confissões de um ex-torturador. Capítulo VI, Operação Rumor, pp. 65-66. Trad. Cláudia Schilling. São Paulo: Semente, (s/d.)].
Em 20 de outubro, enfim, abriu-se a 11ª CEA, que reuniu por cinco dias os comandantes da repressão mais louvados pelos nocheros do continente. O anfitrião da CEA, general Julio César Vadora, comandante do Exército uruguaio, expôs a ideia fixa daquele distinto público: “No campo de batalha da sedição, deve haver um estreito enlace entre os Exércitos […]”. O representante do Chile era o general Gustavo Álvarez Águila, chefe do Estado-Maior do Exército, que amanheceu já no dia 11 de setembro no regimento de Peñalolén onde o general Augusto Pinochet instalou o QG do golpe contra Allende em 1973. O general Álvarez ecoou o mantra de seu líder: “O mundo se encontra em guerra. Uma guerra […] de ações solapadas em que não se distingue vanguarda e retaguarda […]”. O general uruguaio Luís Vicente Queirolo, secretário-geral da conferência, foi mais claro: “Existe uma coordenação entre os exércitos do continente para combater e impedir a infiltração marxista […]”.
A estrela principal da reunião acabou sendo o chefe da delegação argentina, nomeado há menos de dois meses pela presidente Isabelita Perón para o comando do Exército. O tenente-general Jorge Rafael Videla ganhou as manchetes dos jornais ao antecipar o futuro em Montevidéu: “Se for preciso, deverão morrer na Argentina todas as pessoas necessárias para alcançar a segurança do país…”, avisou Videla, seis meses antes de liderar o golpe que matou e fez desaparecer 30 mil pessoas que ‘ameaçavam’ a segurança nacional [Rodríguez Díaz, Universindo e Visconti, Silvia. “Antecedentes de la Operación Cóndor: la Conferencia de Ejércitos Americanos (Montevideo, 1974) y la coordinación de los servicios de inteligência y los aparatos repressivos en el Cono Sur”. Taller (segunda epoca). Revista de Sociedad, Cultura y Politica en America Latina, vol 1, nº 1. Buenos Aires, octubre 2012, p. 139-150].
O líder da comitiva brasileira, mais discreto, era o general Fritz Azevedo Manso, chefe do Estado-Maior do Exército, que derrubou João Goulart duas vezes no espaço de uma década. Em 1954, como tenente-coronel, Fritz assinou o manifesto de 82 oficiais que levou à queda do então ministro do Trabalho de Getúlio Vargas. Em 1964, como coronel, Fritz conspirou no golpe que depôs o presidente da República. Na conferência do Uruguai, o general brasileiro, mais atento à infiltração comunista nos quartéis, mostrou-se preocupado com uma declaração atribuída ao ex-governador Miguel Arraes, sobre “a necessidade de destruir as Forças Armadas por dentro” [Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, verbete ‘Manso, Fritz de Azevedo’, volume III, p. 3541. Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 2001].
O espírito que sobrevoava Montevidéu aterrissou no mês seguinte, novembro de 1975, em Santiago do Chile, com a criação formal da Operação Condor.
O Exército do general Fritz estava lá.
O Exército do Brasil estava lá, no parto que deu à luz a treva da Condor.
Dissimulada como sempre, cínica como nunca, a ditadura do general Ernesto Geisel ainda assim tentava se manter oculta na reunião secreta dos cinco regimes militares [Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia] do Cone Sul reunidos em torno da anfitriã, a Dirección Nacional de Inteligência, a polícia política de Pinochet.
Semanas antes, o diretor da DINA, coronel Manuel Contreras, despachou ao exterior o seu braço-direito, coronel da Força Aérea Mário Jahn, para entregar pessoalmente os convites para a I Reunião de Trabalho de Inteligência Nacional.
O freio de Geisel
Jahn confirmaria depois que os destinatários eram os chefes da repressão na Bolívia, Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil, mas lembrou de um único nome: o do convidado que visitou em Brasília, o general João Baptista Figueiredo, chefe do SNI e amigo de Contreras [Jahn, Mario. Depoimento ao juiz Juan Guzman, da Corte de Apelaciones de Santiago do Chile, em 27/agosto e 3/dezembro de 2003, processo 2182-92-Operación Cóndor, pp 2375-2379. In John Dinges Archive, http://www.johndinges.com/condor/documents/index.html]. Geisel precisou conter o entusiasmo de seu general, pronto para embarcar ao Chile. Contrariando o pedido de Contreras, Geisel mandou rebaixar a comitiva brasileira de três para dois representantes, com ordens estritas para ouvir mais do que falar.
Geisel não queria envolver o Brasil em ações coletivas de repressão, mas desejava preservar o espaço para ações bilaterais, caso a caso, quando necessárias. Figueiredo recebeu uma última ordem do presidente: reduzir a participação brasileira à condição de observador, sem autorização para firmar nenhum documento. O Planalto corrigiu ainda um erro de origem no convite da DINA. O convidado não devia ser o SNI, por definição apenas um órgão de informação do presidente. A missão em Santiago cabia, por dever de ofício, ao CIE, o Centro de Informações do Exército, o braço operacional no combate à luta armada. Dois oficiais do serviço secreto do Exército foram selecionados, com a aprovação do general Confúcio Danton de Paula Avelino, chefe do CIE, e do general Sylvio Frota, ministro do Exército de Geisel.
Os dois parteiros do Brasil no berço da Condor eram o coronel de Cavalaria Flávio de Marco e o major de Infantaria Thaumaturgo Sotero Vaz [Cunha, Luiz Cláudio. Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios. Anexo II, A Sombra do Condor. Porto Alegre: L&PM, 2008, pp. 418-423].
Eram dois veteranos de ação decisiva no combate à Guerrilha do Araguaia (1972-1974), o mais importante foco de guerrilha rural no país, que mobilizou em três campanhas militares um número estimado entre 5 mil e 8 mil homens para o combate a cerca de 70 guerrilheiros ocultos na selva amazônica, no sul do Pará.
Numa única operação de guerra interna, o Exército brasileiro executou em três anos, com êxito, o propósito que tinha a Operação Condor nas três fases com que assombraria o Cone Sul, na segunda metade da década de 1970: a coleta de informações na Fase Um, a caçada e a tortura em operações conjuntas na Fase Dois, o assassinato e o desaparecimento dos prisioneiros na Fase Três.
De Marco desembarcou no Araguaia em outubro de 1973, quando os guerrilheiros estavam reduzidos a 56. Mandava e desmandava na ‘Casa Azul’, sede em Marabá do Estado-Maior do CIE, onde o coronel dispunha de duas equipes de matadores – códigos ‘Zebra’ e ‘Jiboia’ –, cada uma com seis homens, integradas por um capitão, um suboficial, dois sargentos e dois cabos. No total, os dois bandos mataram 19 guerrilheiros, nenhum deles em combate [Studart, Hugo. A lei da selva – estratégias, imaginário e discurso dos militares na guerrilha do Araguaia, São Paulo: Geração Editorial, 2006, p. 260]. O grupo original de 56 guerrilheiros estava dizimado, reduzido a 10 combatentes, quando o coronel deixou o Araguaia, em outubro de 1974. Um ano depois, em novembro de 1975, com a autoridade de um veterano na doutrina hunter-killer de contra-insurgência [McSherry, J. Patrice. Tracking the origins of a state terror network: Operation Condor. Latin american perspectives, vol. 29, no. 1, Brazil: the hegemonic process in political and cultural formation (janeiro, 2002), pp. 38-60], De Marco estava em Santiago do Chile representando o Brasil no berço da Condor.
Ao seu lado estava o major paraquedista Thaumaturgo, um especialista em guerra na selva com curso na Escola das Américas, que desembarcou no Araguaia liderando 36 ‘boinas-pretas’ da tropa de elite do Destacamento das Forças Especiais do Exército, do Rio de Janeiro. Dez anos depois, em 1984, Thaumaturgo assumiu o comando em Manaus do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), unidade de excelência nesse tipo de combate, frequentado por 103 oficiais estrangeiros entre 1966 e 1985, período mais crítico do combate às guerrilhas no Cone Sul. Alguns deles eram agentes da DINA, como reconheceu o próprio Manuel Contreras, revelando que a cada dois meses mandava oficiais para treinar na Escola Nacional de Informações (ESNI), em Brasília, complementando depois o curso no CIGS [Sequeira, Cláudio Dantas. ‘Exército ensinou tortura a estrangeiros’. Folha de S.Paulo, 15 de junho de 2008. Para a presença da DINA no CIGS, ver depoimento do coronel Manuel Contreras no documentário Esquadrões da Morte – a escola francesa, de Marie-Monique Robin, 2004]. O chefe da DINA não tinha o que reclamar do currículo, focado em interrogatório e tortura, mas ficou chateado com o calor sufocante da Amazônia: “Não era muito agradável para os que vinham do Chile ou da Argentina, porque o clima de Manaus é muito ruim”, criticou Contreras. [Um agente da repressão chilena, graduado em 1985 pelo CIGS de Thaumaturgo, deixaria o clima ainda pior em Santiago do Chile, dois anos depois. O capitão Rodrigo Pérez Martinez envolveu-se na execução a sangue frio de 12 guerrilheiros no feriado de Corpus Christi, em junho de 1987. Eram militantes da Frente Patriótica Manuel Rodríguez, braço armado do PC chileno, capturados simultaneamente e fuzilados no chão pela unidade antiterrorista (UAT) da Central Nacional de Informações (CNI), sigla que sucedeu em 1977 a DINA, amaldiçoada pela explosão em Washington que matou o ex-chanceler Orlando Letelier em setembro de 1976. Pérez é um dos 18 agentes do CNI acusados na justiça pelo massacre da ‘Operação Albânia’, junto com o general Hugo Salas Wenzel, diretor e sucessor de Contreras na nova DINA.]
Copa e cozinha
De Marco e Thaumaturgo não eram figuras acidentais na fundação da Condor. Foram escolhas diretas dos dois generais mais importantes da ditadura – o presidente Geisel e seu sucessor, Figueiredo –, o que define bem a hierarquia do envolvimento do Brasil com o bando criminoso que nascia no Chile. Ainda major, De Marco serviu com o coronel Figueiredo quando ele comandava o Regimento de Cavalaria de Guarda, no Rio de Janeiro. Tinha linha direta no Araguaia com o general Milton Tavares de Souza, o chefe mais temido do duríssimo CIE do Governo Médici. Voltou a trabalhar com Figueiredo quando ele assumiu a chefia do SNI, no Governo Geisel, e chegou a diretor administrativo do Palácio do Planalto no Governo Figueiredo. O coronel da Condor era da copa e cozinha no mais alto escalão da ditadura brasileira.
O major Thaumaturgo foi cadete na Academia Militar das Agulhas Negras e aluno do capitão Danilo Venturini. À época da fundação da Condor Venturini já era coronel em Brasília, comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, que fazia a escolta do Planalto do general Geisel. Três anos depois, promovido a general, Venturini era o diretor da ESNI, a escola de informações do SNI, frequentada pelos rapazes da DINA do coronel Contreras. Durante todo o Governo Figueiredo, o instrutor de Thaumaturgo foi o ministro-chefe do Gabinete Militar. Foi Venturini quem recebeu em primeira mão, em dezembro de 1975, a notícia do major recém-chegado do berçário da Condor: “Coronel, foi fundada uma organização – a Condor – para integrar os exércitos da região no combate ao terrorismo e à subversão”, contou Thaumaturgo a Venturini [Cunha, 2008, p. 419].
O Brasil pegou logo o espírito da coisa. O entrosamento da irmandade da Condor era tão fluido que, menos de um ano depois, chamou a atenção da DIA, a Agência de Inteligência da Defesa, o braço de espionagem mais importante do Pentágono. Em setembro de 1976, agentes da DIA em Buenos Aires transmitiram a Washington um quadro mais claro da integração repressiva do Brasil com a Argentina e o Uruguai. O telegrama secreto de 22 de setembro do DIA, repassado à Casa Branca, Pentágono, Departamento de Estado, NSA e CIA, resume com clareza inédita o nível de coordenação, apesar dos trechos censurados. O documento relata a presença de três homens, em trajes civis, embarcando no setor militar do Aeroparque, o aeroporto a dois quilômetros do coração de Buenos Aires. Diz o telegrama:
Em 15 de setembro de 1976… Roberto Viola, chefe do Estado-Maior do Exército, o general brigadeiro Suarez Masón, comandante do I Corpo de Exército, e o coronel Juan Saa, Assistente G-2 do Exército [estavam] a caminho de Montevidéu… Um veterano coronel de Exército responsável pela Inteligência argentina… está viajando a Brasília em 17 de setembro de 1976 para discutir assuntos de inteligência com as Forças Armadas brasileiras… [uma fonte não identificada informa] que a missão era secreta e que o Exército argentino estava trocando informações sobre subversão… ele sugeriu que este tipo de coordenação não era nova, mas não estabeleceu qual era a extensão dessa coordenação, além da troca de informações de inteligência.
[…] muito do sucesso desfrutado recentemente na batalha contra a subversão pode ser atribuído à eficiência da organização e dos procedimentos de inteligência…[segundo] três oficiais militares […], um de cada uma das Forças Armadas. Quando a informação de inteligência é recebida pela polícia ela é rapidamente disseminada para o Exército, Marinha e Força Aérea e vice-versa… [a fonte] descreveu a velocidade de disseminação dizendo que a informação ‘literalmente voava’ de um quartel-general ao outro, assim, as operações são montadas, algumas vezes em questão de horas, para explorar a vantagem antes que os terroristas tenham tempo para reagir.
O comentário final do telegrama da agência militar de inteligência americana é incisivo:
A visita do oficial do Exército ao Brasil fornece uma sólida informação de que os argentinos estão coordenando ativamente com seus vizinhos em temas de contra insurgência. Embora o propósito da viagem de Viola não seja claro, ela pode ter sido para coordenar atividades antissubversivas. As atividades diárias de Viola são usualmente cobertas pela imprensa, mas desta vez não há menção à sua viagem. [DIA, Department of Defense, telegrama secreto 00110001, em três páginas, de 20 de setembro de 1976, com origem em Buenos Aires, transmitido pela Joint Chiefs of Staff para a Casa Branca, Departamento de Estado, CIA, NSA, com cópias para embaixadas em Montevidéu e Brasília. Desclassificado a pedido do procurador Gian Carlo Capaldo. Acesso no site da Comissão Nacional da Verdade, www.cnv.gov.br]
Irmão mais velho
O documento da inteligência americana é apenas um, entre muitos, que revela a forte presença brasileira na conexão repressiva no Cone Sul. As penas brasileiras na Condor, ao contrário do que alguns pensam, não minimiza o papel do Brasil na conexão repressiva multinacional, apesar do descompasso de tempo. A Condor, alegam, nasceu no momento em que a esquerda armada já estava dizimada no campo e nas cidades brasileiras: o Araguaia tinha se transformado num cemitério clandestino e os sobreviventes da guerrilha urbana gemiam nos porões do DOI-CODI.
Há um problema nesse raciocínio: imaginar que a ditadura brasileira, só pela fatalidade do calendário, era um sócio menor da Condor é conceder a mesma indulgência matemática da ‘ditabranda’, ancorada em estatísticas de sangue que comparam as centenas de mortos no Brasil aos milhares de vítimas na Argentina, como se esse relativismo insensato redimisse a truculência institucional de duas décadas dos generais brasileiros.
Na irmandade da Condor, o Brasil não era um primo distante, alheio, alienado.
O Brasil era apenas o irmão mais velho, mais forte, mais influente – talvez o mais dissimulado, certamente o mais cínico –, que fez o que era necessário fazer para organizar e sustentar a máquina de morte montada pelas ditaduras irmãs do Cone Sul.
O Brasil não fez menos do que ninguém e, às vezes, fez primeiro e fez pior. Com exceção do venerando Paraguai, a ditadura no Brasil é mais antiga do que a dos vizinhos – nove anos mais precoce do que a do Uruguai e do Chile, 12 anos mais velha do que a da Argentina. Com a maioridade de seus 21 anos, o regime militar brasileiro durou quatro anos mais que o chileno, nove mais que o uruguaio, 14 mais que o argentino. E sem brandura.
O ‘Esquadrão da Morte’, que seria traço marcante da Condor, estreou no Brasil em 1968. Meses depois, como nome mais temido do esquadrão agregado à repressão política de São Paulo, o delegado do DOPS Sérgio Fleury esteve em missão no Uruguai, pouco antes da criação da Dirección Nacional de Información e Inteligencia (DNII), braço executor da polícia politica financiada pelos Estados Unidos e por seu homem em Montevidéu, o americano Dan Mitrione.
O esquadrão brasileiro ecoou em 1973 em Buenos Aires, quando a extrema-direita peronista montou a Triple A, a aliança anticomunista argentina que a Condor de Buenos Aires assumiu como método e prática no golpe que viria três anos mais tarde.
O coronel de cavalaria Paulo Malhães, o Dr. Pablo do CIE, integrava o time brasileiro que nos idos de setembro de 1973, sob as arquibancadas do Estádio Nacional de Santiago do Chile, ensinava aos homens de Pinochet o jogo duro do interrogatório aprendido na Escola das Américas.
A primeira Acta Institucional da ditadura uruguaia data de junho de 1976, doze anos após o Brasil editar o Ato Institucional nº1 de abril de 1964 [O Ato Institucional No. 1, de 8 de abril de 1964, permitiu a cassação dos direitos políticos por dez anos de todos os cidadãos que fossem vistos como “opositores” ao regime, incluindo congressistas, militares e governadores. Dois dias depois, em 10 de abril, 102 nomes compunham a primeira lista de cassação, entre eles o do presidente deposto João Goulart, do líder comunista Luiz Carlos Prestes, do ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e do fundador da Universidade de Brasília (UnB), Darcy Ribeiro], abrindo a série de 17 atos institucionais que davam uma fachada legal ao poder deslocado do Congresso para os quartéis. No Uruguai, o modelo brasileiro exigiu apenas nove atos institucionais de força.
A Argentina tinha o Sheraton, o Brasil exibia o Hilton.
Mas, como sempre, os brasileiros chegaram primeiro. O mais famoso centro de torturas do Brasil, o DOI-CODI do Exército em São Paulo, foi instalado em 1970 na delegacia policial de uma esquina da rua Tutoia. Ali passaram mais de 2.500 presos, pelo menos 52 morreram. “Agora você vai conhecer o Tutoia Hilton”, diziam os agentes do DOI-CODI, brincando com a fama do lugar.
Somente seis anos depois surgiu o ‘Sheraton’ argentino, que tentava reproduzir o humor brasileiro logo após o golpe que derrubou Isabelita Perón. Funcionava na pequena subcomissaria de polícia de Villa Insuperable, um prédio de dois andares, com garagem no térreo e celas de tortura no piso superior, na cidade de La Matanza, a mais populosa da Grande Buenos Aires.
O ‘Sheraton’ era apenas um dos 60 CCDs – ‘centros clandestinos de detenção’ – montados só em Buenos Aires. Em 1976, ano do golpe na Argentina, chegaram a funcionar 610 CCDs, espalhados em cinco zonas militares. [Alguns CCDs eram temporários. A Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP), criada em 1983 no Governo Alfonsín e responsável pelo Relatório Sábato, lista 161 centros mais duradouros de detenção clandestina em toda a Argentina.] Só na área 232 da zona 2, que abrangia seis províncias e 22 centros clandestinos para uma população de 6 milhões de argentinos, havia cinco CCDs – um deles, na cidade de Posadas, abrigado numa escolinha para mudos [disponível em http://www.desaparecidos.org/nuncamas/web/ccd/ccd.htm. Acesso em 17/janeiro/2014].
Um serial-killer fardado
Era uma máquina de morte essencial para cumprir a promessa do general Jorge Videla na conferência dos exércitos em Montevidéu: “Deverão morrer na Argentina todas as pessoas necessárias para a segurança do país…”. A gana matadora de Videla tinha a adesão até da presidente que ele derrubaria seis meses depois: “Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros”, bradou Isabelita Perón em 1975 diante das tropas da V Brigada de Infantaria de Montanha, em Tucumán, onde o Exército combatia o foco guerrilheiro do grupo trotskista ERP. A cinco quadras de onde falava a presidente, na saída oeste de Famaillá, cidade a 40 km da capital da província, estava o prédio inacabado de uma escolinha rural onde o Exército fincou o primeiro CCD do país, conhecido como La Escuelita. Ali padeceram 1.507 pessoas, nas contas modestas do general Acdel Edgardo Vilas, comandante do ‘Operativo Independencia’.
O Brasil, como sempre, chegou à frente.
Em 1969, seis anos antes da escolinha pioneira em Tucumán, o CENIMAR, o serviço secreto da Marinha, instalou um CCD em uma casa abandonada em São Conrado, bairro nobre da zona sul do Rio de Janeiro, vizinho à maior favela do Brasil, a Rocinha. No final do ano seguinte, 1970, o CIE instalou o CCD hoje mais famoso do país numa casa emprestada ao pé do morro numa rua isolada de Petrópolis, na zona serrana do Rio: a ‘Casa da Morte’.
Conhecida como ‘Codão’, superlativo de DOI-CODI, a casa então clandestina era organizada pelo Dr. Pablo, o mesmo coronel do CIE que interrogou brasileiros no golpe de Pinochet [Para torturas em São Conrado, ver Projeto Brasil: Nunca Mais, tomo v, vol. 3; as torturas, p. 405]. O CCD de Petrópolis era o modelo para outros nove centros clandestinos de detenção espalhados pelo país. [A ‘Casa da Morte’ era um ‘laboratório’, na expressão do coronel Paulo Malhães, que servia de modelo a lugares semelhantes em outros nove Estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão e Pará. Depoimento a Nadine Borges e Marcelo Auler, da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, março de 2014. Entrevista a Chico Otávio, “O corpo que ‘saiu’ para o oceano”. O Globo, 16/março/2014. Jornal Nacional, Rede Globo, 21/março/2014.]
Muitos presos entraram na casa, só um sobreviveu – a guerrilheira Inês Etienne Romeu, após 96 dias de estupros e torturas. O primeiro morto do lugar pode ter sido o sociólogo Carlos Alberto Soares de Freitas, dirigente da VAR-Palmares, executado dias após ser preso em fevereiro de 1971. Um mês antes, confirmando a transformação da tropa em esquadrão da morte, o general Humberto de Souza Mello assumiu o comando do II Exército, em São Paulo, dando ordem para executar os guerrilheiros.
Numa visita ao DOI-CODI da Tutoia, o general deixou a diretriz ainda mais clara a um delegado da tropa: “Matem os terroristas, matem os carteiros que entregam as cartas. [Matem] os familiares, os amigos, seja o que for. Só não quero que morra nenhum de vocês”. [“Quando começou o comando do Humberto, começou a diminuir o terror, porque a ordem dele era matar”, segundo relato do ministro do Exército, Vicente Dale Coutinho, ao presidente Ernesto Geisel em fevereiro de 1974, um mês antes de sua posse. In Gaspari, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002pp. 380-381. Citando depoimento do delegado David dos Santos Araújo, in Autópsia do Medo, pp. 445-446, de Percival de Souza.]
Aqui, mais uma vez, o Brasil chegou à frente da Argentina.
A frase de 1971 do general Souza Mello, confissão demente de um serial-killer fardado e matriz do pensamento matador que contaminava o Exército brasileiro, inspirou cinco anos depois uma boçalidade semelhante do general argentino Ibérico Saint Jean, nomeado interventor na província de Buenos Aires. Em maio de 1976, dois meses após o golpe de Videla, o general Saint Jean trovejou: “Primeiro, mataremos todos os subversivos. Depois, seus colaboradores. Mais tarde, os seus simpatizantes. Então, mataremos os que permanecerem indiferentes. E, finalmente, vamos matar os indecisos…”
A intimidade nada retórica das ditaduras de Brasil e Argentina, base para a conexão da Condor entre os dois mais fortes regimes do Cone Sul, desmente a blandícia dos generais brasileiros e realça a face sangrenta dos argentinos.
O mendigo dos generais
Dois nomes civis marcam bem a identidade e os métodos que levam à conexão criminosa entre Brasília e Buenos Aires: o brasileiro Antônio e o argentino José.
Antônio Delfim Neto era, no Brasil, o que José Alfredo Martínez de Hoz era na Argentina.
Ambos poderosos ministros da Economia dos dois generais mais duros (Médici e Videla) do ciclo militar, tinham a mão de ferro dos quartéis para manter o garrote apertado sobre as fábricas, os sindicatos e os trabalhadores.
O argentino, como sempre, chegou depois do brasileiro.
Em meados de 1969, o ministro brasileiro, mendigando em nome das Forças Armadas, reuniu 15 grandes banqueiros num almoço em São Paulo e passou o chapéu para financiar o combate à subversão pela coordenação repressiva da Operação Bandeirantes, a OBAN, antecessora dos DOI-CODI. Quando chegou a sobremesa, Delfim já tinha recolhido US$ 1,7 milhão para repassar ao general Ernani Ayrosa, chefe do Estado-Maior do II Exército [Gaspari, 2002, p. 62].
A partir dali, os rapapés com a repressão ficaram a cargo da FIESP, a mais poderosa entidade industrial do país, que reunia a patota de Delfim. Quem passava o chapéu entre os empresários era o dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen, presidente da Ultragaz, que emprestava caminhões para ações da OBAN e tinha acesso franqueado ao porão do DOI-CODI da Tutoia para se deliciar com sessões de tortura [Cidadão Boilesen. Direção de Chaim Litewski, mont. Pedro Asberg. (documentário), Brasil, 2009, filme, 92 min].
Boilesen foi executado a tiros numa rua de São Paulo, em abril de 1971, por um comando guerrilheiro. Delfim Netto compareceu, compungido, ao seu enterro.
Passados 42 anos do funeral, Delfim ainda hoje finge não saber por que morreu metralhado o amigo dos porões. Antes ‘czar da economia’ da ditadura, hoje ‘Professor Emérito’ da USP, agora conselheiro dos presidentes Lula e Dilma Rousseff, guru do PT e colunista da imprensa de esquerda, Delfim continua cínico como nunca.
O homem que coletou fundos para o DOI-CODI que torturou a guerrilheira Dilma Rousseff no Governo Médici alega ainda hoje que não sabia das torturas e, com candura ou caradura, diz que acreditava nas mentiras de Médici. Jura Delfim: “A administração civil era absolutamente independente, nunca houve qualquer interferência… Uma vez perguntei ao presidente se havia [tortura], ele me respondeu que não havia nada. Acreditei. O Médici era mais sério do que parece” [Sfredo, Marta. “O governo assustou os empresários”. Entrevista em Zero Hora, 1/dezembro/2013].
O José argentino fez em 1975 o que o Antônio brasileiro já fazia em 1969: estreitou seus laços com os militares.
Presidente da maior siderúrgica do país, a Acindar, José Martínez de Hoz procurou o então chefe do Estado-Maior do Exército, general Jorge Videla, para encerrar uma greve de 59 dias dos metalúrgicos na planta de Villa Constituición. A tropa veio, prendeu, sequestrou e matou alguns dos grevistas. Instalou-se ali o CCD da Acindar, um dos primeiros centros clandestinos de detenção que assombrariam a Argentina. Quando Videla deu o golpe, em março de 1976, Martínez de Hoz tornou-se o Delfim Netto da ditadura, gerindo a economia pelos próximos cinco anos.
O José argentino, como o Antônio brasileiro, também acreditava que o seu general era um homem sério.
Noite e névoa
A simbiose dos regimes militares na luta contra o inimigo comum venceu desconfianças seculares na região. As fronteiras refletem isso. De norte a leste, a divisa brasileira é líquida e arenosa, com o recorte dos 9.200 km de litoral banhado pelo Atlântico. De sul a oeste, os limites do país se estendem por 16.800 km, boa parte encoberta pela floresta, outro tanto seguindo o leito de rios, um pedaço menor escancarado pela fronteira seca, sem obstáculos. Apenas 3.600 km compreendem a divisa com os três vizinhos do sul – Uruguai, Argentina e Paraguai –, irmãos na ditadura e na Condor.
Não é por acaso que o mais poderoso grupamento militar do país seja o III Exército – hoje Comando Militar do Sul, que reúne mais de 50 mil homens, um quarto da força terrestre brasileira, com 18 oficiais-generais, 160 organizações militares, 75% da artilharia e 90% dos 1.700 tanques de guerra do país.
Foi pelas fronteiras guarnecidas pelas tropas sulistas que transitaram os refugiados e insurgentes do Cone Sul, uns saindo em busca da segurança do exílio na Europa, outros voltando do exterior para a resistência no coração da ditadura.
Entre eles, na caça de uns e outros, além das fronteiras da lei, estavam os homens sem farda e sem limites físicos e morais que agiam como forças encobertas no breu da escuridão e na treva do terror do Estado. Seguiam a lógica assassina do decreto de 1941 de Hitler, o Nacht und Nebel, a noite e a névoa que ocultavam os esquadrões hunter-killer do nazismo na caçada e no desaparecimento forçados dos dissidentes.
Uma operação metódica, um combate programado que permitia o sumiço sem rastros, sem explicação, sem destino. No segundo semestre de 1978, o Exército argentino reformou uma velha estação de ônibus em um bairro de classe média, Floresta, a oeste de Buenos Aires. Instalou-se ali o CCD Olimpo, onde 700 pessoas foram torturadas. Só 50 sobreviveram. Perguntado sobre o paradeiro final dos cadáveres que saíam do Olimpo para um aeroporto próximo, um caminhoneiro respondeu com a poesia tétrica daqueles tempos: “Vão para a névoa de nenhum lugar” [Martínez, Tomás Eloy, El País, Espanha. “El Olimpo del horror”, 1/janeiro/2006].
No ambiente nebuloso do terror de Estado, a máquina de morte só é eficaz quando ela age de forma coordenada, dentro e fora de suas fronteiras. A interação interna entre as forças de segurança nacionais e a conexão externa com os serviços de inteligência dos países vizinhos é que permitem a ação transnacional da repressão no Cone Sul. É neste ninho que nasce a Condor. Mas é a conexão que explica – antes, durante e depois da Condor – o ambiente terrorista estatal que mergulhou os cinco maiores países do sul do continente em quase um século acumulado de noite e névoa. [São 92 anos somados de ditadura, por ordem de duração: Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Chile (1973-90), Uruguai (1973-85) e Argentina (1976-83). Cunha, Luiz Cláudio. As garras do Brasil na Condor. Seminário Internacional sobre a Operação Condor, Câmara dos Deputados, Brasília, 4 e 5/julho/2012.]
Os militares brasileiros estão conectados há muito tempo. Em agosto de 1965, o chefe do Exército argentino, general Juan Carlos Onganía, que derrubaria o presidente Arturo Illía menos de um ano depois, visitou em Brasília o general Humberto Castelo Branco, que tinha derrubado o presidente João Goulart, pouco mais de um ano antes. No QG do Exército brasileiro, Onganía bradou contra o comunismo, “inimigo fluido, tenaz, sinuoso”, pregando “a unidade dos exércitos, especialmente Argentina e Brasil, para combater o inimigo comum, superando as fronteiras estatais para delimitar novas fronteiras ideológicas” [Aldrighi, Clara. Conversaciones reservadas entre políticos uruguayos y diplomáticos estadounidenses. Selección de documentos del Departamento de Estado, Uruguay y Estados Unidos 1964-1966. Montevidéu: Ed. Banda Oriental, 2012, pp 150-152. Telegrama da Embaixada dos Estados Unidos em Montevidéu para o Departamento de Estado, 11/setembro/1965: Reacción uruguaya … al comandante del Ejército argentino].
O fantasma da conexão que diluía limites nacionais surgiu em 1960, sob a assombração do comunismo materializado em Cuba com a revolução de Fidel Castro. Sob influxo dos Estados Unidos, os chefes militares do continente se juntaram na Conferência dos Exércitos Americanos (CEA), que iria coordenar a frente militar anticomunista de onde nasceria a Condor. Os cinco primeiros encontros, sintomaticamente, foram em território estadunidense.
Obsessão sem fronteiras
A partir de 1965, no Peru, o CEA se reuniu de forma alternada e bienal, em anos ímpares, nos outros países da região. No espaço de um quarto de século, entre a 4ª CEA (realizada nos Estados Unidos em 1963, um ano antes do golpe no Brasil) e a 18ª CEA (reunida na Guatemala em 1989, ano da queda do Muro de Berlim), os generais do continente tiveram 15 encontros de cúpula – e em 14 deles estavam expressos no programa, como tema obrigatório, a segurança interna, a guerra revolucionária e o combate à subversão comunista.
Os comandantes brasileiros também só pensavam naquilo. No início de setembro de 1973, uma semana antes do golpe de Pinochet, o general brasileiro Breno Borges Fortes, chefe do Estado-Maior do Exército, pregou na 10ª CEA, na Venezuela: “Devemos ampliar a troca de experiências, de informações e ajuda técnica entre os camaradas de armas na guerra ao comunismo”.
Na primeira semana de novembro de 1974, o general paraguaio Rafael Guanes Serrano, chefe do Departamento de Inteligência do ditador Alfredo Stroessner, passou cinco dias em Brasília liderando a terceira Conferência Bilateral de Informações com a ditadura de Ernesto Geisel. Aluno da academia brasileira das Agulhas Negras na década de 1950, Guanes perambulou, no trepidante período de 1972 a 1981, em pelo menos 25 missões oficiais nos países do Cone Sul [Nascimento, Solano. “Brasil condecorou general Serrano”. Folha de S.Paulo, 29/maio/2000. Ficha de Guanes Serrano na Divisão de Pessoal do Estado-Maior das Forças Armadas do Paraguai].
A mais importante delas aconteceria em Santiago do Chile, um ano depois da reunião de Brasília, quando firmaria pelo Paraguai o documento de fundação da Condor.
Em 1975, na 11ª CEA de Montevidéu, o general Videla prometeu matar todos os que ameaçassem a segurança nacional. Dois anos depois, em Manágua, na 12ª CEA, o comandante do Exército argentino Roberto Viola reforçou: “A guerra ideológica não respeita fronteiras”.
Na 13ª CEA, diante dos 18 exércitos presentes em Bogotá em 1979, Viola justificou o combate sem limitações geográficas: “O ponto de vista comum da legalidade me parece ter perdido seu sentido, quando se refere à agressão marxista”.
O chefe da delegação brasileira, general Francisco de Mattos Jr., vice chefe do Estado-Maior do Exército, fez coro com Viola: “Estivemos de acordo em quase tudo”. Ao lado do Uruguai, Chile, Paraguai e Argentina, com quem fundara a Condor quatro anos antes, o Brasil da ‘abertura’ do general Figueiredo foi um dos sete países linha-dura que prometeram apoio “profundo e total” na guerra ao comunismo [“O perigo vem de fora”. Veja, 21/novembro/1979, pp. 20-21].
O comunismo se foi, mas ficou a paranoia.
Apesar da subversão dizimada, a guerra continuava em plena democracia. No Governo Sarney, dois anos após a retirada do último general do Palácio do Planalto, o Brasil mantinha o dedo no gatilho.
Na 17º CEA, que reuniu 15 exércitos do continente em novembro de 1987 em Mar del Plata, Argentina, todos os protocolos assinados eram sigilosos. O motivo de tanto segredo fica claro na leitura do último documento, exatamente o ‘Acordo nº 15’, que previa ações dos Exércitos nos “demais campos do poder”, além das medidas estritamente do campo militar, “para a segurança e defesa do continente americano contra o MCI”, sigla do sinistro Movimento Comunista Internacional.
No informe sobre a “subversão no Brasil”, o general de brigada Paulo Neves de Aquino disparou na testa da Constituinte convocada pelo presidente civil José Sarney, garantindo que, “dos 559 membros da Assembleia Geral Constituinte, cerca de 30% são militantes ou simpatizantes das OS (organizações subversivas)” [Rossi, Clovis. “Os Exércitos planejam ações anticomunismo nas Américas”. Folha de S.Paulo, 25/setembro/1p88]. Outro protocolo secreto mostrava que a garra da Condor, depenada pela queda das ditaduras no final da década de 1980, continuava uma obsessão para os generais. O ‘Acordo nº 8’ fala em “situação de inteligência combinada” a cargo de uma central supranacional de inteligência. Era o velho bico da Condor, sob o pretexto de catar “informação e inteligência” sobre o MCI para os quartéis do CEA. O oficial mais graduado do Brasil em Mar del Plata era o general de divisão Carlos Tinoco Ribeiro Gomes, vice chefe do Estado-Maior e, três anos depois, ministro do Exército na presidência frenética de Fernando Collor. [Ao contrário dos outros países, o Brasil nunca enviava o chefe do Exército para o CEA. Um quarto de século mais tarde, coube à ex-guerrilheira Dilma Rousseff, como presidente, elevar a participação brasileira, enviando para a 29ª CEA o seu general mais estrelado, o próprio comandante do Exército, general Enzo Martins Peri. Na reunião de 2011, no Peru, os chefes militares da segunda década do Século 21, às voltas com operações de paz da ONU e ajuda em zonas de desastre, já nem se lembravam das penas da Condor do século passado.]
A manopla e a luva
No auge da paranoia anticomunista, quando a Condor estava ativa e operante, a repressão brasileira no exterior se amparava em dois braços musculosos – um civil, outro militar, ambos camuflados no aparato da diplomacia.
A mão militar usava a manopla dos agregados militares das embaixadas, a Rede Agremil, onde os órgãos de inteligência infiltravam seus agentes sob o disfarce de adidos militares.
A mão civil calçava as luvas de pelica do CIEx, o Centro de Informações do Exterior, o serviço secreto que o Itamaraty infiltrou nas embaixadas a partir de 1966, por obra e graça de seu criador, o ex-capitão de cavalaria e diplomata Manoel Pio Correa. Em junho de 1964, três meses após o golpe, como fiel suporte da CIA no Rio de Janeiro, Pio Correa foi transferido para a embaixada brasileira em Montevidéu para ajudar na vigilância ao grupo de exilados de João Goulart e Leonel Brizola [Agee, Philip, Inside the Company: the Diary of CIA. pp. 383-384. São Paulo: Ed. Círculo do Livro, 1976]. Nas 20 mil páginas do arquivo secreto do CIEx de Pio Correa estão os nomes de 64 dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos na ditadura, alguns deles capturados pela Condor [Sequeira, Cláudio Dantas. “O serviço secreto do Itamaraty”. Correio Braziliense, 22/julho/2007, pp. 3-5].
O CIEx do embaixador atuava em conúbio com os agentes infiltrados nas embaixadas pelo CIE, CENIMAR, CISA e SNI – os serviços secretos do Exército, Marinha, Aeronáutica e Palácio do Planalto –, que formavam o abecedário letal do regime. Essa conexão produzia as informações e as decisões que tornavam a Condor operacional e eficaz.
A cumplicidade de diplomatas e militares obrigou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) a criar dois grupos de trabalho com áreas fronteiriças: o GT Operação Condor e o GT de Exilados e Estrangeiros. Um grupo de 34 diplomatas, de conselheiros a embaixadores, estava sob investigação no GT Estrangeiros em 2013, enquanto o GT Condor filtrava uma relação do Itamaraty com nomes de 194 adidos das Forças Armadas lotados em embaixadas brasileiras no santuário da Condor: 54 na Argentina, 49 no Uruguai, 48 no Paraguai e 43 no Chile [GT Condor, Comissão Nacional da Verdade. Arquivo do autor].
Os diplomatas e adidos militares desses postos têm conhecimento, ou envolvimento ou participação ativa em pelo menos 17 casos de brasileiros desaparecidos no sul do continente (Argentina, Bolívia e Chile) em ações coordenadas da repressão regional. [Na Argentina, onze brasileiros integram a lista de vítimas do Relatório Sábato (1984), com dados atualizados da CONADEP e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). O Chile reconheceu, no Relatório Rettig (1992), a responsabilidade pelo sumiço de cinco brasileiros em seu território. Relatório do GT Condor, Comissão Nacional da Verdade, 18/março/2013.]
A intimidade da repressão brasileira com seus parceiros no exterior está expressa numa circular secreta da Armada Argentina, de janeiro de 1976, dois meses antes do golpe de Videla, dando passe livre para operações antissubversivas numa zona de Buenos Aires a sete agentes do SNI, lotados na embaixada brasileira. São dois majores, dois capitães e três agentes, com número de código e codinomes, como Trucha, Rayo, Puma, Rato, Luz. O oficial de enlace do SNI era o capitão Mário Lagos, código 003, Letra C, codinome Espina [Armada Argentina. Circular Interna nº 15, de 18 de janeiro de 1976. Do comandante da 1ª Subzona de Seguridad de la Capital Federal, Area 11, Zona Sur del Comando de Operaciones Antisubversivas para os chefes dos Grupos de Tarefa subordinados ao comando e ao GT do Servicio de Información Naval (SIN). Xerox, sem assinatura, do Arquivo do MJDH].
A conexão entre os militares dos dois países, base essencial para pouso e decolagem da Condor, independia da ditadura. Em 19 de março de 1976, cinco dias antes do golpe que derrubou Isabelita, o adido naval da embaixada brasileira em Buenos Aires, capitão de mar-e-guerra Lima Cardoso, foi ao QG da Armada acertar os detalhes da visita iminente do ministro da Marinha do Brasil, almirante Geraldo Azevedo Henning. Depois da conversa com o almirante Emílio Massera, comandante da Armada, o adido voltou com um detalhe intrigante que obrigou o embaixador João Baptista Pinheiro a enviar a Brasília um telegrama secreto e urgente, às 20h35 daquela sexta-feira.
O adido naval, alertava o embaixador, notou que o almirante Massera fez de próprio punho algumas correções no programa da visita. Onde se lia “Audiência com a Senhora Presidente”, Massera risco e emendou: “Audiência Presidencial.
Assim, com a sutileza de um porta-aviões, o almirante Massera fez a emenda que antecipava aos brasileiros já na sexta-feira a radical mudança de gênero e de regime que a Casa Rosada sofreria na quarta-feira com a troca da presidente Isabelita Perón pela junta militar do almirante Massera, do brigadeiro Agosti e do general Videla. Sete meses depois, a cumplicidade entre as ditaduras de Geisel e Videla era total. Um grupo de agregados estrangeiros, incluindo os adidos do Exército e da Marinha na embaixada brasileira, foram convidados a visitar a zona de operações antiguerrilha em Tucumán, a noroeste de Buenos Aires. Para disfarçar, avisaram que viagem tinha a direção oposta, a sudeste da capital, num balneário em Mar del Plata. Para reforçar a camuflagem, os adidos foram obrigados a vestir uniformes de campanha do Exército argentino. Não adiantou nada: “Hoje pela manhã, no entanto, o noticiário radiofônico anunciava a presença em Tucumán da comitiva de adidos”, lamentou-se no telegrama o frustrado embaixador brasileiro [Telegrama confidencial 3328 da Embaixada em Buenos Aires para Brasília, enviado às 16h50 de 7/outubro/1976. Firmado pelo embaixador Cláudio Garcia de Souza. Arquivo GT Condor, CNV, Brasília].
Após o golpe, de um lado e outro da fronteira, a integração repressiva ficou ainda menos sutil, com favores mútuos e mais explícitos. Em maio de 1976, o III Exército, área de atuação central da Condor, distribuiu um pedido de busca confidencial sobre 91 exilados brasileiros na Argentina, localizados com a ajuda da repressão vizinha. Um dos nomes da lista era o do ex-presidente João Goulart, identificado com o endereço de seu escritório na avenida Corrientes, 319, sala 347, invadida por agentes argentinos semanas depois [“Subversivos brasileiros na República Argentina”. Pedido de Busca Confidencial nº 124-B2-76, de 20/maio/1976. 2º Grupamento de Fronteira, em Cascavel, PR. 5ª Região Militar, III Exército. Arquivo CNV]. Em outubro de 1976, o Brasil devolveria o favor, difundindo pelo CIE, o serviço secreto do Exército, uma lista de 149 pessoas na mira da Condor argentina. A repressão brasileira determinava a localização, vigilância e prisão imediata de quem fosse localizado. Da lista, 22 pessoas continuam desaparecidas até hoje. O chefe do Setor de Operações do CIE, na época, era o coronel Brilhante Ustra, o homem do DOI-CODI da Tutoia [Boccia Paz, Alfredo et al. En los sótanos de los generales: Los documentos ocultos del Operativo Condor. Prólogo de Augusto Roa Bastos. Assunção: Expolibro, 2002, p. 216. Pedido de Busca Confidencial nº 771-76-II, de 5/outubro/1976. Centro de Informações do Exército].
A crônica de sangue e medo que marca a Operação Condor afeta milhares de pessoas e suas famílias no Cone Sul assombrado pela ação clandestina e terrorista da repressão transnacional. O Brasil foi protagonista dessa história de horror ainda impreciso, oculto pela névoa do sigilo, camuflado pela treva do desaparecimento forçado.
Dentro e fora das suas fronteiras, caçando dissidentes ou devolvendo refugiados pela fronteira do crime e da ilegalidade, a repressão brasileira coordenou suas operações com as ditaduras vizinhas – e cumpriu assim os requisitos bandoleiros da Condor –,antes, durante e após sua fundação no Chile.
Três casos exemplares, ao longo de uma década, revelam o engajamento visceral do Brasil numa empreendimento assassino que o país, como sempre, não assume.
Buenos Aires, dezembro de 1970.
O ex-coronel de Cavalaria Jefferson Cardim de Alencar Osório, exilado no Uruguai, foi o primeiro insurgente armado contra a ditadura. Comandou em 1965 uma frustrada guerrilha de 23 guerrilheiros que durou 36 horas, no sul do país, até ser cercado e preso. Regressou ao exílio após torturas em três quarteis. Voltou a ser preso na Argentina na tarde de sexta-feira, 11 de dezembro, ao descer do ferry-boat que liga Montevidéu a Buenos Aires. A operação mostra a coordenação repressiva do Brasil em três países, antecipando o voo da Condor [Informe 338, do adido do Exército, Nilo Caneppa da Silva, da Embaixada do Brasil em Buenos Aires, em 19/dezembro/1970. Protocolado na Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI), sob o nº 001061, em 20/janeiro/1971. Documento revelado por Darío Pignotti, de Página 12, Argentina]. Jefferson ainda atravessava o Rio da Prata, junto com o filho de 18 anos e um sobrinho, quando começou a se mover a engrenagem da repressão.
O adido na embaixada em Buenos Aires, coronel Nilo Caneppa da Silva, informou sobre o trio de viajantes ao órgão de inteligência da Polícia Federal argentina, a Direção de Coordenação Federal. Com o carro cercado por quatro homens armados, Jefferson foi preso ao desembarcar, cena acompanhada de longe pelo coronel Caneppa. Os detidos foram levados até o gabinete do coronel Jorge Cáceres Monié, superintendente da inteligência, no último andar de um prédio na avenida Belgrano, no centro da cidade. Dali, já algemados e encapuzados, os presos desceram ao submundo do terror, no subsolo 4 do edifício. Lá, pai e filho apanharam, levaram choques, foram torturados com vela derretida no ânus. Cáceres ligou para a embaixada brasileira e pediu a presença de Caneppa, que compareceu na companhia do adido da Força Aérea Brasileira (FAB) em Montevidéu, coronel-aviador Leuzinger Marques Lima, justamente o homem que vigiava os passos de Jefferson no Uruguai.
Na manhã de sábado, 12, Caneppa informou da prisão ao embaixador brasileiro, Antônio Azeredo da Silveira, a quem pediu um avião para levar os presos ao Brasil. Apenas 26 horas após a prisão, em pleno sábado, o ditador de plantão, general Roberto Levingston – um presidente tampão entre os generais Juan Carlos Onganía e Alejandro Lanusse – assinou o decreto de expulsão. O embaixador descobriu em Buenos Aires, por acaso, um jatinho da FAB que servia ao ministro do Trabalho de Médici, Júlio Barata. Um detalhe que salvou a vida de Jefferson e seu filho: o ministro era sogro de um sobrinho do preso e muito amigo de Corina, mãe do coronel. Assim que soube pelo ministro da prisão do filho, dona Corina avisou muita gente – e a notícia foi divulgada pelo mais famoso colunista social do país, Ibrahim Sued, que deu ‘bola branca’ para a prisão de Jefferson. Prisão confirmada, o preso já não podia mais ser ‘desaparecido’. [Depoimento de Jefferson Lopetegui de Alencar Osório a Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, 16/janeiro/2013. Arquivo MJDH.]
Na noite de sábado, o adido aeronáutico em Buenos Aires, coronel-aviador Miguel Cunha Lanna, avisou que o Ministério da Aeronáutica, em Brasília, tinha autorizado o embarque de Jefferson e do filho no jato do ministro. Às seis horas da manhã de domingo, 13, eles foram retirados da cela e, ainda algemados, embarcaram num comboio de quatro carros que tomou o rumo da base de El Palomar, sede da 1ª Brigada da Força Aérea, na zona oeste da capital. Militares brasileiros e argentinos uniformizados aguardavam na pista, ao lado do jatinho branco com o brasão da FAB. Mas eles só embarcaram após a chegada do Mercedes-Benz preto, com chapa diplomática, de onde desceu o embaixador Azeredo da Silveira.
O diplomata recebeu um documento, que leu e assinou. A ditadura brasileira recebia os presos e passava o recibo. Jefferson e o filho viajaram algemados, vigiados por dois funcionários da embaixada, dois sargentos (armados com metralhadora INA e pistolas Colt 45) e o adido aeronáutico, coronel Leuzinger. O jatinho foi recepcionado na pista da base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, pelo comandante da 3ª Zona Aérea, João Paulo Moreira Burnier, o brigadeiro mais radical da Aeronáutica brasileira. Jefferson e o filho, de novo encapuzados, foram levados para tortura nas celas do CISA, o serviço secreto da Força Aérea, comandado pelo brigadeiro Carlos Afonso Dellamora [William, Wagner. “O primeiro voo da Condor”. Brasileiros, edição nº 65, 19/dezembro/2012. A reportagem de William, o mais completo relato sobre o sequestro de Jefferson, conquistou o Prêmio Vladimir Herzog de 2013, na categoria Revista]. Jefferson ficou sete anos preso. O filho ficou detido ainda dois meses, até ser libertado, de repente, sem qualquer processo.
O sucesso do primeiro voo da Condor, ainda sem nome, fez muito bem às carreiras de dois personagens centrais do sequestro em Buenos Aires. O coronel Caneppa chegou a general e, em 1973, era o diretor da Polícia Federal no Governo Médici, em Brasília. O embaixador Azeredo da Silva foi brindado com o posto máximo da carreira, assumindo o Itamaraty como chanceler do Governo Geisel, quando o Brasil ajudou a fundar a Condor no Chile.
Porto Alegre, novembro de 1978
A prisão de dez militantes do clandestino Partido por la Victoria del Pueblo (PVP) em Montevidéu, no início de novembro de 1978, desencadeou uma sequência de eventos que levou ao mais retumbante fracasso da Operação Condor, com ressonância internacional. As revelações das torturas excitaram a repressão uruguaia, com a possibilidade de capturar o líder do PVP, Hugo Cores, que vivia oculto no Brasil. A chave para isso era a localização em Porto Alegre de um casal de uruguaios, Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez Diaz, que faziam a ponte entre os insurgentes de Montevidéu e os órgãos de direitos humanos na Europa, com a mediação de Hugo Cores. O casal era a isca perfeita para fisgar o peixe grande do PVP. A Condor tinha um alvo em Porto Alegre.
Esta era uma missão para Rojo Maíz (Milho Vermelho), o codinome de rádio do coronel Calixto de Armas, chefe do Departamento 2 do Comando Geral do Exército. Acima dele havia apenas o general Manuel J. Nuñez, chefe do Estado-Maior, e o supremo-comandante, general Gregório Goyo Álvarez. Abaixo do coronel De Armas estava a máquina repressiva do Uruguai, que pairava sobre as quatro divisões de Exército através do OCOA, sigla do temido Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas, e seu braço operacional, a Compañia de Contrainformaciones, o esquadrão hunter-killer que fazia e acontecia no país.
A dupla OCOA-Compañia correspondia ao DOI-CODI brasileiro [Cunha, 2008, Anexo II, A sombra do condor. pp. 371-383].
Quando De Armas assumiu o Departamento 2, em agosto de 1977, o chefe do Setor de Operações do CIE em Brasília era um velho amigo: o coronel Brilhante Ustra, o criador do DO-CODI da Tutoia. Em novembro de 1978, o departamento de inteligência do Estado-Maior em Montevidéu entrou em contato com o responsável pela DOI-CODI gaúcho, a chefia do Estado-Maior do III Exército, em Porto Alegre, pedindo passe livre para a Condor uruguaia. O sucessor de Ustra no destacamento de operações do CIE, nesta época, era o tenente-coronel José Antônio Nogueira Belham – o mesmo Belham que em janeiro de 1971, como major, comandava o DOI-CODI do Rio de Janeiro que torturou, matou e desapareceu com o corpo do deputado Rubens Paiva, segundo denúncia feita agora pela Comissão Nacional da Verdade.
Consultado em Brasília, o chefe do CIE, general Edison Boscacci Guedes, ex-adido militar na embaixada do México, autorizou o voo da Condor uruguaia em Porto Alegre. A parte brasileira ficou a cargo do DOPS do delegado Pedro Seelig, conhecido como o “Fleury do Sul”: só com sua tropa, o policial havia dizimado a esquerda armada no sul, poupando ao DOI-CODI local o serviço sujo que o Exército precisava fazer, sem intermediários, no Rio e em São Paulo. Na primeira semana de novembro, a cúpula da elite repressiva uruguaia desembarcou em Porto Alegre.
O comandante da Compañia de Contrainformaciones, major Carlos Alberto Rossel, chegou com o subcomandante, major José Walter Bassani, e o chefe da seção técnica, capitão Eduardo Ramos. Na segunda semana, foram rendidos pelo capitão Glauco Yannone, chefe da seção administrativa, aluno do ‘curso de inteligência militar 0-11’ na Escola das Américas. Foi ele quem, ao lado de Seelig, deteve Lilián Celiberti na Rodoviária de Porto Alegre na manhã de domingo, 12 de novembro. Horas depois, localizado seu apartamento, prenderam lá Universindo Rodríguez e os dois filhos de Lilián, Camilo (8 anos) e Francesca (3).
Durante horas, o casal foi torturado na sede do DOPS, no prédio da Secretaria de Segurança Pública. Universindo ficou pendurado até a madrugada no pau-de-arara, golpeado incessantemente pelo capitão. Yannone bateu tanto que ficou com o punho doído. De repente, sentou no chão, tirou o calçado e continuou a golpear o preso, algemado, com o salto do sapato. Resumo da cena: era um oficial de um Exército estrangeiro torturando um preso na masmorra da polícia política local, no interior da sede da segurança pública, diante de policiais e agentes públicos brasileiros, coniventes e cúmplices de uma ação repressiva sem qualquer base legal ou moral.
Um absurdo que só a Condor permite, um crime que só o terror de Estado explica.
Cinco dias depois, a Condor desabou, quando a ratonera armada pela repressão para capturar Hugo Cores foi desmascarada no apartamento de Lilian, mantida ali sob a guarda do DOPS e do capitão uruguaio Eduardo Ferro, chefe do setor de operações da Compañia. Em vez do chefe do PVP, como eles esperavam, quem bateu à porta foram dois jornalistas da sucursal da revista Veja, alertados por um telefonema anônimo de Cores. A quebra do sigilo obrigou a Compañia a abortar o sequestro, forçando os sequestradores à fuga apressada para o Uruguai. Em 2007, numa entrevista em rede nacional de TV no Uruguai, o próprio capitão Eduardo Ferro reconheceu: “Havia coordenação com os Exércitos regionais. Eu fiz o translado das pessoas do Brasil para o Uruguai. Elas foram presas pela polícia e pelo Exército do Brasil. É só o que posso dizer”.
O sequestro de Porto Alegre virou um fiasco internacional, o que impediu o desaparecimento de praxe dos sequestrados. Mesmo assim, Lilián e Universindo foram condenados pela ditadura a cinco anos de prisão pela falsa ‘invasão’ do Uruguai. Preocupado com o vexame que expôs o governo brasileiro diariamente no ocaso de seu mandato, o general Geisel resolveu reforçar a farsa uruguaia. Convocou o general Figueiredo, já indicado como seu sucessor no Planalto, e deu ordens para resolver o caso. O ex-chefe do SNI, que escalou o time do Brasil na fundação da Condor, repassou o problema para o general que o tinha substituído no SNI, Octávio Medeiros.
Na primeira semana de janeiro de 1979, o general Medeiros desceu em Porto Alegre com o chefe da Polícia Federal, coronel Moacyr Coelho, para uma reunião de cúpula da segurança no QG do III Exército. Um dos presentes era o velho amigo do coronel De Armas: o coronel Brilhante Ustra, então no comando de uma guarnição de artilharia na Grande Porto Alegre. Nasceu dali uma história esdrúxula de outra ‘invasão’, desta vez colocando o casal uruguaio e as crianças a bordo de um ônibus de linha que cruzava a fronteira. A farsa foi desmontada pela imprensa em poucas horas.
O Brasil, mero observador na fundação da Condor, virou personagem central do único fiasco público da Condor, irritando e constrangendo os três generais mais importantes de Brasília: Geisel, o presidente, Figueiredo, o futuro presidente, e Medeiros, o chefe do SNI que sonhava um dia ser presidente.
Foi um vexame internacional, cometido em território brasileiro, sob as asas da ditadura militar, deixando para trás dois perseguidos políticos, duas crianças e dois jornalistas, todos vivos para lembrar e para contar a história. A Condor jamais havia passado por uma vergonha tão grande [Idem, pp. 222-226].
Rio de Janeiro, março de 1980
Não é um Condor, mas é um monstrengo alado. Com o peso de quase 1.000 homens corpulentos e a envergadura de um prédio de quase 15 andares, o Hércules C130-B é um caminhão voador, que nunca passa despercebido. Seja pelo tamanho, seja pelo barulho de seus quatro turbo-propulsores Rolls-Royce de 19.800 cavalos, uma potência equivalente aos motores combinados de 275 carros Gol, o automóvel mais popular do país.
Pois um Hércules assim barulhento e grandalhão desceu na base aérea do Galeão um pouco antes de 12 de março de 1980. Naquele dia, aterrissou ali um avião da Varig, vindo de Caracas, no destino final de uma viagem iniciada no México. Os passageiros foram recebidos ainda na pista por um inusitado ‘corredor polonês’ de cerca de 30 homens mal-encarados, que pareciam procurar alguém. Alguns falavam espanhol. Uma passageira percebeu a armadilha e, quando um dos homens a segurou pelo braço, começou a gritar: “Somos Mónica Binstock e Horácio Campiglia!” Repetiu o grito de desespero mais duas vezes, até que se calou e sumiu, levada com o seu companheiro de viagem. Nunca mais foram vistos com vida.
O casal era argentino e integrante dos Montoneros, o grupo guerrilheiro da esquerda peronista. Campiglia era do comando militar e líder das chamadas TEI, Tropas Especiais de Infantaria treinadas pela OLP no sul do Líbano. Os Montoneros exilados executavam um arriscado plano de retorno ao país, mas toparam com uma dura reação da ditadura argentina. O grupo de recepção no Galeão era formado por agentes do Batalhão 601, a tropa de elite da inteligência do Exército, braço operacional da Condor argentina no exterior. Tinham desembarcado do Hércules C-130, da Força Aérea Argentina.
Os detalhes dessa operação foram revelados ao Governo estadunidense, três semanas depois, num memorando confidencial do oficial de inteligência da embaixada em Buenos Aires, James J. Blystone, ao seu embaixador. Ali, o Brasil ficava definitivamente comprometido com a Condor, com a revelação de que a repressão argentina pedira “ao seu colega da Inteligência militar brasileira permissão para realizar uma operação no Rio”. O memorando informa que a luz verde foi concedida para a equipe especial que voou ao Brasil no Hércules da Força Aérea, comandado pelo tenente-coronel Román. “Ambos foram capturados vivos e voltaram para a Argentina no C-130”, informa Blystone.
Fontes da repressão dizem que Mónica e Campiglia foram enviados para El Campito, o CCD de Campo de Mayo, o maior quartel do país, a 30 km do centro de Buenos Aires, onde sobreviveram apenas 43 dos 5.000 presos que passaram por lá. O casal do Galeão engrossou a lista de mortos.
Blystone ouviu que, nas duas semanas anteriores, as forças de segurança tinham capturado na Argentina, ainda vivos, 12 integrantes TEI dos Montoneros. Um deles, ex-instrutor num campo guerrilheiro da Líbia, tinha mudado de lado para colaborar com a repressão. Quase 30 anos depois, a história se confirmaria no Rio de Janeiro, pela voz autorizada do coronel Paulo Malhães, o organizador da ‘Casa da Morte’ de Petrópolis e responsável em 1980 pelos agentes infiltrados do CIE no Rio de Janeiro. Um certo ‘Gringo’, ex-Montonero trazido por um coronel do Batalhão 601, agia como agente duplo no Brasil, abastecendo de informações o CIE e o SNI e agindo infiltrado junto ao Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR). A Argentina bancava US$ 20 mil dólares mensalmente para manter a ‘Operação Gringo’ no Rio de Janeiro [Murakawa, Fábio. “O infiltrado”. Playboy, 30/outubro/2008].
Há dois anos a ditadura de Videla tinha instalado em Brasília o homem certo para a função: o coronel Jorge Ezequiel Suárez Nelson trocou a chefia da central de informações do Batalhão 601 para assumir no Brasil o posto de adido militar na embaixada argentina, aonde chegou em 17 de dezembro de 1978 – exatamente um mês após a aparição no apartamento de Lilián Celiberti dos dois repórteres da revista Veja que acabaram frustrando o sequestro da Condor em Porto Alegre.
Só em 1980 morreram vinte Montoneros que tentavam retornar à Argentina. O desempenho de Suárez foi tão bom em Brasília que ele voltou a Buenos Aires em 1981 como subsecretário da Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE). No final do ano Suárez virou general, lotado no Estado-Maior Conjunto. A ‘Operação Morcego’, montada pelo Batalhão 601, estava contendo a ferro e fogo o retorno da guerrilha peronista, cumprindo a ordem de executar o inimigo ainda no exterior [Cunha, 2008, p. 430].
Apesar das dimensões superlativas da ação da Condor no Galeão, o Brasil finge que não sabe de nada. Um avião de grandes proporções, com uma tropa estrangeira armada a bordo, desce na mais importante base aérea do país – e não há registros oficiais sobre isso. O plano de vôo do Hércules que decolou da base de El Palomar previa gastar quase três horas e meia no trajeto sem escalas de 2.020 km entre Buenos Aires e Rio, apenas na viagem de ida. Só o raciocínio ordinário de uma ditadura, como a brasileira, ousaria esconder o pouso e decolagem de uma aeronave militar estrangeira numa base da Aeronáutica, sem exibir até hoje os documentos necessários para uma operação dessa envergadura
Proposta indecente
É natural que uma ditadura seja cínica. Mas, não é aceitável ver este comportamento numa democracia.
Desde sua criação, há quinze anos, o Ministério da Defesa parece mais preocupado em defender os militares do que em exercer seu papel de hegemonia civil sobre os quartéis. O atual ministro, Celso Amorim, adotou o mesmo comportamento submisso de seus antecessores, negando sempre a existência dos arquivos e documentos essenciais para resgatar a memória da ditadura e para reconstruir a história deturpada pela violência e pela censura. “Não existem documentos”, repete teimosamente Amorim, ecoando a ordem unida dos generais brasileiros, que parecem ainda imersos na Guerra Fria.
Desta vez, a Argentina não imita o Brasil. Na sexta-feira, 21, três dias antes do aniversário do golpe de Videla, o ministro da Defesa Agustín Rossi fez o que seu colega brasileiro não faz: abriu na internet mais de 1.500 documentos com 280 atas secretas da Junta Militar de 1976.
Aqui, um mês atrás, a Comissão Nacional da Verdade pegou o Ministro da Defesa na mentira. Em audiência na sede da Defesa, no dia 18 de fevereiro, os sete comissários da CNV levaram ao ministro Amorim um requerimento contundente pedindo sindicância das Forças Armadas para apurar o uso de bases e quartéis para a prática de torturas.
Com dados consistentes e fatos inquestionáveis, a CNV lista sete unidades do Exército, Marinha e Aeronáutica, em quatro capitais diferentes, onde prédios públicos foram usados ilicitamente para abusos contra a pessoa humana, caracterizando um desvio de finalidade que demanda apuração, responsabilização e reparação. Dois desses prédios são as sedes do DOI-CODI do coronel Brilhante Ustra, em São Paulo, e do DOI-CODI do general Belham, no Rio de Janeiro – onde morrera sob torturas, entre outros, o jornalista Vladimir Herzog e o deputado Rubens Paiva. [Relatório Preliminar de Pesquisa. Graves Violações de Direitos Humanos em Instalações Militares. Requerimento ao Ministério da Defesa, Relatório e Anexos. Comissão Nacional da Verdade, 18/fevereiro/2014. Acesso em http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/432-cnv-requer-as-forcas-armadas-que-apurem-como-instalacoes-militares-foram-usadas-para-tortura. Site da CNV: www.cnv.gov.br]
O ministro Amorim, sem a escolta de nenhum general na reunião, remexeu-se na cadeira, incomodado com o imprevisto requerimento da CNV. E reagiu inesperadamente com uma proposta indecente: ofereceu a liberação de documentos militares, em troca da garantia da CNV de que não haverá a temida revisão da Lei de Autoanistia, que a ditadura se autoconcedeu em 1979, no Governo Figueiredo – o general que se fez representar na fundação da Condor.
Com a altivez devida, os comissários da CNV rejeitaram na hora a barganha imoral proposta pelo ministro Amorim. Se documentos existem, eles devem aparecer, sem para isso espichar ainda mais o manto de impunidade que protege os torturadores há meio século.
A oferta inusitada do Ministro da Defesa coloca duas novas questões: os documentos afinal existem, desmentindo o que ele e seus generais sempre dizem. E a revisão inevitável da Lei de Autoanistia, de fato, inquieta os quartéis.
O ministro Celso Amorim e todos os seus generais, subordinados de uma presidente que foi guerrilheira, presa e torturada no regime militar, esquecem que, mais do que a sombra do passado que nos persegue, temos pela frente o futuro que nos desafia diante de um presente que não pode nos atemorizar.
O ministro da Defesa e os chefes militares deste Brasil cínico e esquecido podem aprender muito com a sábias palavras do historiador uruguaio Universindo Rodríguez Diaz, o sequestrado de Porto Alegre que sobreviveu à Operação Condor, às torturas, às ditaduras aqui e lá e aos tempos com dor do Cone Sul. Disse Universindo:
Somos também sobreviventes da repressão. Perdura em nós a memória e estamos eticamente obrigados a defendê-la, a nos reencontrar com ela, ainda que seja doloroso. Tive a possibilidade de sobreviver. Levo comigo a obrigação de não esquecer. [Rodriguez Díaz, Universindo. “Todo está cargado en la memoria, arma de la vida y de la historia”. A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Conexão Repressiva e Operação Condor, volume 3. Enrique Serra Padrós (org.) e outros. Porto Alegre: Ed. CORAG, 2010, pp. 179-204]
Universindo morreu de câncer em setembro de 2012.
Cabe a nós assumir a obrigação moral que ele nos cobra: não esquecer.
******
Luiz Cláudio Cunha é jornalista