Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

1964… 2014

A deposição do presidente João Goulart continua a ser um tema divisivo na política brasileira porque, meio século depois, alguns itens da agenda de 1964 continuam presentes, ao vivo e a cores. Registre-se que o elemento primordial, detonador e desfecho da revolta, foi o fato de que os dois lados jogavam com a carta da intervenção militar. Jango tinha um “dispositivo” nos quartéis e seus adversários tinham conspirações desconexas, até que um general voluntarioso implodiu a ordem constitucional. Não existe mais essa carta, mas há outras que, na essência, derivam de pensamentos autoritários. Vale a pena visitá-los, pois permitem que se descubra, em 2014, o código genético do golpismo de 1964.

O primeiro é a falta de respeito à vontade popular. Há 50 anos, uma das provas de que Jango era um esquerdista estava na sua defesa do voto para o analfabeto. Um iletrado não podia ter o mesmo peso político que um doutor. Veio a ditadura e cassou os votos de todos para a escolha do presidente. Em 1969, depois que o presidente Costa e Silva ficou incapacitado, os generais sabiam que o voto de um analfabeto não valia o de um doutor, mas descobriram que o de um coronel não valia o de um general e o de um general que comandava uma mesa não valia o de outro, que comandava uma tropa. Resultado: elegeram o general Emílio Médici sem que se saiba como essa escolha foi feita. A desqualificação do voto alheio está aí até hoje.

Há 50 anos havia uma repulsa ao Congresso e aos políticos. Um lado achava que o povo não sabia votar e elegia ladrões. O outro achava a mesma coisa e havia nele quem quisesse que a rua arrancasse uma Constituinte para fazer as reformas para o bem do país, permitindo inclusive que Jango fosse candidato à Presidência. Hoje as duas visões sobrevivem e no ano passado a doutora Dilma flertou com uma Constituinte exclusiva com adereços plebiscitários.

DNA golpista

Passaram-se 50 anos e aquilo que se chamava de infiltração comunista no governo denomina-se hoje aparelhamento do Estado pelo PT. Havia infiltração comunista na Petrobras em 1964, houve um período de petropirataria durante o tucanato e hoje há um comissariado petista na empresa.

1964 continua divisivo porque em 2014 há pessoas que veem nas instituições democráticas a origem e sede dos males. Isso vale tanto para o sujeito que não confia na vontade popular que escolhe presidentes petistas como para comissários que veem nessa mesma vontade uma massa incapaz de eleger um Congresso que vote as leis necessárias para que o partido desenvolva o que chama de projeto estratégico. O golpista é antes de tudo um cético em busca de surtos de força.

Em 1964 havia dois candidatos à Presidência: Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek. Muita gente preferia um golpe a Lacerda e, do outro lado, sonhava-se com o golpe que evitaria a volta de JK. Um terceiro grupo queria virar a mesa contra os dois. Deu no que deu e vinte anos depois todos achavam que tanto Lacerda como JK teriam sido melhores que a ditadura. Como a “Revolução Redentora” teria sido coisa dos militares, todos os civis viraram democratas. Felizmente, em 2014 a carta dos quartéis saiu do baralho. O DNA golpista contudo não desaparece, mesmo enfraquecido, transmuta-se.

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Elio Gaspari é jornalista