Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nunca fomos tão felizes. Então veio o golpe

Paraíso não era, nunca foi, mas raras outras vezes tivemos a impressão de que o céu podia ser aqui mesmo como entre a segunda metade da década de 1950 e os primeiros anos da década seguinte. Democracia plena, otimismo econômico, industrialização acelerada, um presidente (JK) sonhador, sorridente e dinâmico, com a autoestima turbinada por duas Copas do Mundo, pelo reinado de Eder Jofre nos ringues internacionais e Maria Esther Bueno nas quadras de Wimbledon, o Brasil se descobriu contemporâneo, progressista e culturalmente relevante.

Relevante e influente. Graças, sobretudo, à bossa nova, nosso maior produto de exportação depois do café, do futebol e de Carmen Miranda. Oficialmente apresentada aos americanos num histórico concerto no Carnegie Hall, em novembro de 1962, a bossa nova precisou de muito pouco tempo para conquistar os gringos e polinizar a música popular do mundo inteiro. Só entre 1961 e 1963, Samba de Uma Nota, de Tom & Newton Mendonça, foi gravada por 15 músicos americanos e europeus.

Vivíamos uma renascença musical, não por obra exclusiva da bossa nova e da “redescoberta” do samba do morro (primeiro no Zicartola e na Estudantina, mais tarde no show Opinião), mas também porque o protofunk de Jorge Benjor (então Ben, simplesmente) aos poucos enxotava das pistas de dança o twist e o hully gully. A Jovem Guarda ainda era pouco mais que um brilho nos olhos de Roberto Carlos quando as refinadas harmonias de Moacyr Santos, o nosso Duke Ellington, ganharam um LP (Coisas) com o selo de uma nova gravadora independente, Forma, tão exigente e elegante quanto a Elenco, que Aloisio de Oliveira, ex-parceiro de Carmen Miranda e Tom Jobim , criara para eternizar em disco o melhor da moderna música popular brasileira.

Elenco e Forma surgiram em 1963, ano especialmente marcante para a cultura do País. Líamos mais e melhor naquela época, tínhamos uma das mais sofisticadas revistas do mundo, a Senhor, que quatro anos antes chegara às bancas prometendo em editorial o que nunca deixaria de cumprir: publicar artigos, ensaios, cartuns, reportagens, entrevistas e fotos para os “elementos mais responsáveis da vida nacional, a fim de estimulá-los a considerar com mais seriedade os problemas culturais do País”.

Desenhada por Carlos Scliar e Glauco Rodrigues, com textos da fina flor da intelectualidade (de Clarice Lispector a Paulo Francis, Ferreira Gullar, Ivan Lessa, José Guilherme Merquior, Luís Lobo) e cartuns de Jaguar, Senhor era a nossa Esquire, a The New Yorker carioca, o complemento mensal perfeito para o banquete de inteligência e erudição que nos serviam os sabáticos suplementos literários do Jornal do Brasil (SDJB), do Estado e da Tribuna da Imprensa.

Poesia

Não havia livros de autoajuda nem autores repetidos nas listas dos mais vendidos. Herbert Marcuse e Marshall McLuhan faziam a cabeça da massa pensante e nossos poetas de ponta (Drummond, Bandeira, João Cabral) ainda estavam vivos e ativos, assim como a arte da crônica e da narrativa curta, honradas naquele ano por Sérgio Porto (A Casa Demolida), Carlos Heitor Cony (Da Arte de Falar Mal), Dalton Trevisan (Cemitério de Elefantes) e pelo estreante Rubem Fonseca, cuja coletânea de contos, Os Prisioneiros, lançada por uma pequena editora, deixou a crítica extasiada.

Com a recém-fundada Escola Superior de Desenho Industrial formando seus primeiros quadros, iniciamos a década de 1960 ainda mais convencidos de que um bom visual podia até melhorar um mau produto. A revista Senhor era um bom exemplo. E o mesmo se diga do Jornal do Brasil depois de sua reforma gráfica no final dos anos 1950, das capas minimalistas dos discos da Elenco e dos livros da Civilização Brasileira, estas concebidas por Eugenio Hirsch, e dos lançamentos da exclusiva Editora do Autor, a cargo de Glauco Rodrigues e Bea Feitler.

Com suas estrelas (Cacilda Becker, Maria Della Costa, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi) no apogeu e ainda sem a concorrência das telenovelas, o teatro nacional exibia um vigor artístico que São Paulo (TBC) e Rio (Teatro dos Sete) em breve deixariam de ver. À margem da ribalta clássica, o Centro Popular de Cultura, núcleo de esquerda da União Nacional dos Estudantes criado em 1961 para levar teatro ao povo e discutir seus problemas com as lições de Marx e Brecht, entrou em cena cheio de entusiasmo, e na primeira oportunidade, aproveitando-se da maré favorável ao cinema da terra (O Pagador de Promessas conquistara a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1962), meteu-se a produzir filmes; o primeiro, urbano, de episódios ambientados no que hoje chamam de comunidade carente (Cinco Vezes Favela), o segundo, rural, no coração dos conflitos agrários do Nordeste, inspirado num cordel de Ferreira Gullar e dirigido por Eduardo Coutinho, com o título de Cabra Marcado Para Morrer.

Símbolo

Ainda vendendo otimismo adentramos 1964, recebendo a visita, nos primeiros dias de janeiro, de um dos mais cobiçado símbolos sexuais do cinema, Brigitte Bardot, e, duas semanas depois, da atriz e cantora espanhola Sarita “La Violetera” Montiel. Sarita veio filmar Samba, uma bobagem carnavalesca; BB veio a lazer, trazida pelo noivo, Bob Zagoury, um playboy marroquino apaixonado pelo Brasil, que a levou para uma aldeia de pescadores, na região dos Lagos, no Estado do Rio. Nascia ali a mística de Búzios, a Saint-Tropez do Atlântico Sul, onde até hoje sua musa e padroeira é reverenciada, agora em forma de estátua de bronze. BB lá se enfurnou durante quatro meses, segundo ela própria, os mais felizes de sua vida.

Ela ainda era o grande assunto mundano da praça, quando Glauber Rocha fez a primeira exibição privada de Deus e o Diabo na Terra do Sol, para um seleto grupo de amigos, na manhã de uma sexta-feira 13. E fomos todos para o vetusto cinema Vitória, perto da Cinelândia, centro do Rio, adrede escolhido porque dali os convidados de Glauber identificados com o governo Jango rumariam para o ominoso Comício da Central do Brasil, programado para o final da tarde.

Estávamos a 18 dias do golpe militar. Deus e o Diabo só seria lançado em julho, depois de se consagrar em Cannes. Já Cabra Marcado Para Morrer, cujas filmagens, em Engenho da Galileia (Pernambuco), foram interrompidas pelos militares, teve de esperar pela anistia para poder ser concluído, exibido e várias vezes premiado. Apenas a ditadura estava marcada para morrer. Mas teríamos de esperar 21 anos. 

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo