Quando o general Mourão Filho resolveu mover suas tropas para o Rio de Janeiro, na noite de 30 de março de 1964, teve início o golpe que instaurou uma ditadura no país por longos 15 anos.
O general apostou alto. O que ele, e ninguém mais, poderia imaginar era que a aposta seria recompensada por uma vitória fulminante. Em cerca de 24 horas, decidiu-se a parada. Mais um pouco, celebrou-se a vitória do golpe.
Uma estranha derrota.
Assim se referiu March Bloch à derrocada da França frente aos exércitos nazistas em 1940. Como compreendê-la? Depois de alguns revezes, mas dispondo ainda de consideráveis forças, sem contar as de aliados, os franceses preferiram capitular num melancólico desmoronamento.
Pensando no assunto, o historiador francês avançou reflexões a respeito de como, e por que, ao longo dos anos, haviam-se constituído na França atitudes e disposições marcadas pelo derrotismo. Uma espécie de cultura política capitulacionista. Fora esta, mais do que o poder de fogo nazista, que levara a França à desmoralização de uma derrota quase sem luta.
Preguiça intelectual
A vitória do golpe e sua contraface, a derrota das esquerdas em 1964, também foram estranhas. Muito estranhas.
E o mais estranho é que tenham sido naturalizadas como inevitáveis. Aconteceu porque tinha de acontecer. Os profetas do passado repetem como um mantra: a correlação de forças não permitia outra saída. Como os golpistas eram muito mais fortes, a vitória pendeu para o seu lado como caiu a maçã de Newton, movida pela força da gravidade.
As evidências não comprovam a tese.
Pesquisas de opinião pública da época atestam a popularidade do presidente Goulart, mesmo desgastado, e a sedução exercida pelo programa das reformas de base. Havia equilíbrio entre os campos da reforma e da contrarreforma. As forças populares e suas organizações não eram desprezíveis. Nas instituições, além do presidente da República, contavam com o apoio de governadores e de um amplo leque de lideranças políticas. Até nas Forças Armadas e nas polícias militares, o campo reformista era numeroso e detinha posições intermediárias e mesmo de comando.
Por que, então, capitularam?
Passados 50 anos, a questão continua de pé. Não tem consistência a versão de que, após uma análise fria das forças de cada campo, os reformistas teriam mesmo que capitular. No momento do embate, no caos dos choques que se esboçam, raros são os que reúnem informações exaustivas sobre as forças disponíveis ou potenciais, inclusive porque a própria luta, uma vez desfechada, modifica os rumos que os eventos tomarão. Nada se define antecipadamente. E, como gosta de dizer Edgar Morin, o improvável, muitas vezes, acontece. De resto, é frequente na história política forças aparentemente reduzidas crescerem no curso mesmo da luta. Podem ganhar causas consideradas perdidas. Ou também perder. Mas só numa hipótese a derrota é certa – quando se resolve não lutar.
No caso do golpe de 1964, foi isto que ocorreu no campo dos reformistas: resolveram perder sem lutar. É isto que precisa ser explicado, compreendido e interpretado.
A fuga de Goulart teve, sem dúvida, efeitos nefastos. Dada a tradição da cultura política nacional-estatista, na qual todos olham para o Estado e para o presidente da República, ela suscitaria a clássica racionalização: “Eu queria lutar, mas fiquei esperando ordens.” Mas a desculpa é de uma pobreza franciscana para compreender uma cadeia imensa de sucessivas rendições. E é muita preguiça intelectual fazer de Jango, ressalvada sua responsabilidade, o bode expiatório de uma derrota histórica e social.
Por que as lideranças políticas, sindicais e militares não resistiram?
Mais e melhor
Será que tiveram medo do povo? O medo do povo foi um dos grandes fatores que cimentaram a heterogênea frente golpista. Até que ponto este medo não terá contaminado as lideranças reformistas, muitas das quais compartilhavam com os líderes golpistas a condição de elites sociais de uma sociedade ainda profundamente estratificada e hierarquizada?
E lá embaixo da pirâmide social? Por que as camadas populares não resistiram? Não faltam exemplos históricos de revoltas desesperadas de movimentos sociais que vão para o enfrentamento, mesmo sem suas tradicionais lideranças. No entanto, em 1964, à exceção de alguns núcleos, cedo desarticulados, não há registros de movimentos sociais autônomos escolhendo o caminho da resistência aberta aos golpistas.
Será que ainda não estimavam como “sua” aquela república? Apesar das conquistas sociais e do reconhecimento de suas lideranças, não terá faltado tempo histórico para que percebessem que ali estava se jogando um jogo crucial, envolvendo seus próprios interesses?
É certamente possível discordar destas hipóteses. Mas não é menos certo que se torna necessário pensar mais e melhor sobre a estranha derrota que precipitou uma ditadura que mudaria a história do país.
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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF)