Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O golpe e o choque

1964, ano do golpe militar. Ano também em que Clarice Lispector lança o mais enigmático romance que escreveu: “A Paixão Segundo G.H.”. São dois universos destoantes. Mais que isso: em conflito. De um lado, a agitação das ruas, a efervescência política, o choque social e, ato contínuo, a chegada à ditadura. De outro, pela primeira vez na primeira pessoa, a história de uma mulher solitária que resolve arrumar o quarto de empregada à espera de sua nova ocupante. É para uma trabalhadora – uma empregada doméstica – que G.H., a patroa elegante, se põe a trabalhar. Prepara sua chegada. Cumpre um ritual de nascimento. As posições se invertem: a patroa trabalha, enquanto a empregada se ausenta da cena e descansa.

Mas é muito pobre, além de perigoso, fazer uma leitura política de “G.H.”. O livro é muito mais que isso. Já no pórtico, Clarice adverte seus leitores: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido por pessoas de alma já formada”. Enquanto o golpe se espalha pelas ruas, Clarice, sozinha, aferra-se ao choque de ser. “G.H.” é a história de um renascimento. Uma espécie de “revolução interior”, na qual todo um mundo íntimo desaba para, depois de um grande sofrimento, outro mundo tomar seu lugar. Tanto no exterior – Brasil, ano de 1964 – como no interior – o coração da personagem G.H. – há turbulência, desestabilidade, perturbação. Sim, existe um paralelo secreto que une os dois acontecimentos, golpe e romance, embora cada um deles se desenrole em um mundo completamente separado do outro.

Não é por acaso que G.H., aproveitando que a empregada deixou o emprego e a nova ainda não chegou, usa a solidão para penetrar nas dependências de serviço de seu apartamento, onde raramente costumava pisar. “O que queria essa mulher que sou?” Ali, em meio aos destroços de uma vida comum, ela depara com uma barata que se espreme na fresta semiaberta da porta do armário. “Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem. De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa”. Em um primeiro impulso violento, G.H. trata de defender seu território do imundo e do primitivo e, com um golpe seco, espreme o inseto contra a porta. Agora, da barata escorre aquela gosma branca que, em geral, preferimos não encarar, de tal modo ela agride nosso senso civilizado e limpo. Mas G.H. faz exatamente o contrário: decide provar do líquido arcaico (sêmen?) e agora precisa enfrentar seu nojo humano – seu limite humano – para conseguir isso.

Às vésperas do golpe militar, Clarice se recolhe para dentro e escreve sobre os mecanismos secretos que separam os humanos dos animais. Busca um mundo anterior ao humano: a barata expõe a matéria (a “coisa”) que G.H., com a cultura, esconde. Fuga? Não parece ser o caso. Clarice nunca foi de fugir das coisas. Talvez um cansaço com a inevitável fragilidade humana que a política – inconstante, incerta, virulenta – expressa tão bem. No momento em que a ferida dessa fragilidade está aberta, sangra, Clarice resolve voltar-se para dentro do humano e perguntar-se a que ele veio. Decide encarar as raízes da fragilidade, tomá-la não como um defeito, mas como nosso fundamento. Fazer perguntas que, na efervescência externa, ninguém ousa ou tem tempo para fazer.

O que é “G.H.” senão um livro sobre a possibilidade – ou impossibilidade – da linguagem? A linguagem como nosso único, mas também precário, lar. Talvez a agitação política tenha levado Clarice a se perguntar por essas relações de fundamento que, na enxurrada das notícias e dos acontecimentos, costuma se perder. Os fatos nos arrastam, nos prendem na carruagem da história, e esquecemos de simplesmente ser.

Vindo do nada

A política é a arte da retórica, campo da eloquência e do belo argumento – mas a literatura nada tem a ver com a retórica, o bem falar, o bem dizer. Nada tem a ver com a ideia da eficácia ou de resultados, bases do pragmatismo político e do discurso político. Ao contrário: a literatura se relaciona com aquilo que não pode ser dito. Talvez Clarice tenha escrito “G.H.” contra o império da retórica que, boa ou ruim, decente ou indecente, não importa aqui, se alastrava pela vida brasileira. Desviando-se dos que preparavam o golpe, e também daqueles que contra ele lutavam, Clarice se volta para dentro de si. Ela se fecha. Não na superfície de um eu pessoal, com suas miudezas narcísicas, mas em algo muito mais vasto: aquele ponto de origem – de choque e não de golpe – em que nasce o humano. Um eu neutro.

O humano também nasce do horror, nasce do contato com o repulsivo e o abjeto, nasce de uma recusa insistente contra a qual, contudo, algo mais forte se impõe: a própria noção de humanidade. O humano nasce de um choque – provar da gosma branca que escorre da barata agonizante produz um choque que ultrapassa todas as nossas noções de conforto, de elegância e de bem viver. Toda e qualquer noção do bem dito e do bem escrito. Choque com a matéria bruta e com o inexpressivo, com todo esse território que antecede o humano e sua linguagem e, no entanto, nos constitui.

A personagem de Clarice é uma mulher saturada de fatos – e, naquele momento que antecede o golpe e depois o envolve, o país parece farto dos acontecimentos. “A G.H. vivera muito, quero dizer, vivera muitos fatos. Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que tivesse a viver para que me sobrasse tempo de… de viver sem fatos? De viver.” É desse recuo em relação aos fatos – enquanto o país neles se agita – que trata o romance de Clarice. O que existe antes dos fatos? Mais grave ainda: o que existe detrás dos pensamentos? E a luta política parece ser uma espécie de peste do pensamento, que se desdobra aceleradamente para todos os lados, penetra em todos os eventos sociais, adota todos os estilos e todas as nuances e nos ensurdece.

Seu biógrafo americano, Benjamin Moser, nos lembra que em 1964, pouco antes de publicar “G.H.”, Clarice declarou numa entrevista: “Se eu tivesse que dar um título a minha vida ele seria: à procura da própria coisa”. Enquanto os frutos da civilização se agitavam nas ruas, demonstrando a precariedade e a instabilidade do humano, Clarice desejava retornar ao anterior ao humano, chegar de volta à coisa em si, matéria bruta, a partir da qual todo o humano se constituiu. Ultrapassar as contingências, as condições históricas, as realidades sociológicas, ultrapassar o próprio pensamento – humano por excelência, e por tantas vezes desastrado –, silenciar a linguagem para chegar ao mundo primitivo e quieto de que todos viemos, e para o qual todos voltaremos.

A gosma que escorre da barata agonizante é um símbolo perfeito dessa matéria original, indiferente à agitação dos dias e ao desenrolar dos episódios históricos, matéria que simplesmente é. Seria chegar àquilo que o homem – por ser bicho, antes de ser homem – tem de mais seu.

No ano de 1964, enquanto o Brasil chega ao auge do fervilhar frenético, Clarice conclui sua travessia do deserto – sozinha, desamparada, propositalmente decidida a se afastar das miudezas humanas – e nos entrega um livro. Nas livrarias, em contraste com o nascimento da ditadura, ele parece completamente absurdo. Parece não ter sentido. E até hoje, se pensamos nele contra o pano de fundo da política, essa impressão se acentua. Nas ruas, as expressões horrorizadas diante da página que se vira abruptamente na história brasileira. No livro, a busca obsessiva pelo inexpressivo.

Clarice, em vez da arte expressiva, ou da arte “psicológica”, preferia a frieza da arte bruta. Buscava o vazio e o que não tem expressão. O que sobrevive a qualquer turbulência exterior. Aquilo que persiste, apesar de ditaduras, golpes e contragolpes. Buscava o homem em si, bicho solitário e desamparado, tão atordoado quanto uma barata que, de repente, se vê espremida contra uma porta. “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo. E tão imunda estava eu, naquele meu súbito conhecimento indireto de mim, que abri a boca para pedir socorro.” Nesse território anterior ao homem, onde as coisas são o que são, não há sentido, mas apenas matéria. Matéria suja, sangrenta, disforme – grande magma original de que descendemos. Descobre Clarice que é no neutro, e não na elevação das palavras, que o verdadeiro sentido da vida se esconde.

“O que sai do ventre da barata não é transcendentável (…), o que sai da barata é: hoje”, G.H., tomada pelo desejo do inumano, nos diz. Não quer uma coisa que remeta a outra, que remeta a outra – não quer o grande cordão de associações e de metáforas que constituem a cultura. Quer o momento e não o fato – que se cristaliza como história.

De certo modo, Clarice escreveu “G.H.” não para escapar da história, da grande história social, mas para congelá-la e nos obrigar a encarar aqueles aspectos medonhos – o ser em seu desamparo, a coisa parada em si mesma, o nada – que ela, com sua agitação e gritaria, procura esconder. Para denunciá-la como uma tentativa humana de deter e de prender o que não se detém nem prende. Termina, assim, por relativizar a grandeza dos feitos históricos – seja a nosso favor ou contra nós. Termina por apontar sua transitoriedade quase obscena, chocante, indicando que, por detrás deles, só uma coisa realmente sobrevive: o homem vindo do nada e feito matéria, o homem ignorante de si, o homem perdido que, seja em qual contingência for, permanece. Para quem soube ler, esse foi, no ano do golpe militar, talvez o grande choque.

Última salvação

Por tudo isso, “A Paixão Segundo G.H.” nos fica – meio século depois de seu lançamento – como um enigma. Não se trata de responder a uma pergunta, de desmascarar essa ou aquela realidade – mas de rasgar o real, deixando escorrer os fundamentos brutos dos quais viemos. Mas, como ainda se trata de um romance, chegamos ao mais estranho: Clarice precisa da linguagem (da literatura) para denunciar o fracasso da linguagem (da literatura). Há sempre a esperança (humana) de se salvar com uma máscara.

“A identidade – a identidade que é a primeira inerência – era a isso que eu estava cedendo?” Não suportamos esse magma original que serve de gênese para nós mesmos. Não suportamos – se observamos bem – a própria condição humana. No ano do golpe, Clarice nos leva a afrontar esse choque, e por isso pensava que seu romance só devia ser lido por pessoas maduras, prontas para a grande batalha. Uma batalha indiferente às circunstâncias históricas, que se passa em nossas entranhas. Luta contra a máscara da linguagem, que, ainda assim, Clarice foi obrigada a usar como última salvação. Pois no fim, apesar de tudo, é sempre ela que nos salva.

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José Castello é jornalista e escritor. Autor, entre outros, de “Ribamar” (Bertrand Brasil, Prêmio Jabuti de romance) e de “Vinicius: o Poeta da Paixão” (Companhia das Letras, Jabuti de ensaio)