Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Antes de tudo, um cético

Um dos filósofos brasileiros mais interessantes e mais discretos raramente sai à rua do bairro de Santa Cecília, onde mora, em São Paulo. Em seu apartamento, Oswaldo Porchat Pereira exercita muito mais a mente do que as pernas apoiadas pela bengala lhe permitem. Aos 76 anos, o ex-professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – um advogado do ceticismo grego em pleno século 21 – inspira alunos, orienta pesquisas e teses e atrai cada vez mais a atenção dos estudiosos. Mas é com grande desconforto que assiste à crise de valores e à onda de ceticismo difuso gerada pela atual sequência de escândalos de corrupção política no país.

‘O homem é naturalmente um amante da verdade, diz o filósofo cético Sexto Empírico. As pessoas comuns têm uma necessidade natural de crer e de acreditar’, afirma Porchat. ‘Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada. É claro que o ceticismo filosófico faz uma crítica dessa propensão à crença e procura explicá-la. Mas nem por isso o cético deixará de reconhecer o papel histórico e social que as crenças representam.’

Em tempo de desesperança, é bom lembrar duas coisas: primeiro, os momentos de crise moral na sociedade fazem parte da história da civilização; segundo, o ceticismo possui uma experiência milenar de crítica ao dogmatismo e à certeza dos detentores transitórios da ‘Verdade’. ‘Quando lemos textos gregos antigos e romanos sobre os eventos políticos daquela época, é com enorme frequência que encontramos referências precisas à terrível corrupção no meio político das cidades, na Grécia, em Roma e em suas colônias’, ressalta. ‘Sabemos que isso aconteceu em variados países e em variadas épocas. Mesmo quando não havia imprensa as populações acabavam mais ou menos cientes do que se passava, o que gerou protestos e revoltas populares.’

Primado da razão

No sentido vulgar do termo, a imprensa brasileira tem contribuído – e muito – para fomentar o ‘ceticismo’ da população, acredita Porchat. Essa contribuição é salutar na medida em que enseja uma necessária demanda por mudança no estado de coisas. ‘Graças à imprensa, a classe média que tem acesso a ela pode inteirar-se do que está acontecendo. Infelizmente, as classes populares não têm acesso. A consciência estimula uma reação sadia. Temo, entretanto, que algumas vezes, ao menos, essa denúncia legítima de fatos de corrupção se exerça de maneira parcial, privilegiando certos grupos que não se censuram e focalizando mais outros em que porventura se tem interesse maior, no momento, em denunciar.’

Especialista em Aristóteles, sobre quem defendeu sua tese de doutoramento, ‘Ciência e Dialética em Aristóteles’ (publicada pela Unesp em 2000), Porchat acabou por render-se ao ceticismo grego e tornar-se um filósofo neopirrônico, termo derivado do nome de Pirro de Élida (365-275 a.C.), o fundador do ceticismo. Sistematizada nos séculos 2 e 3 pelo médico e filósofo grego Sexto Empírico, o pirronismo influenciou vários pensadores, como Montaigne (1533-1592) e David Hume (1711-1776).

Os principais artigos de Porchat sobre o ceticismo encontram-se no livro Rumo ao Ceticismo (Unesp, 2004), que tem suscitado seminários e cursos em universidades brasileiras e na Argentina. ‘Em 40 anos publiquei dois livros. Minha escrita é muito policiada. Reescrevo muitas vezes. Isso me torna pouco produtivo’, explica o autor. O zelo com as palavras já virou lenda e levou o filósofo José Arthur Giannotti a observar, no prefácio de Ciência e Dialética em Aristóteles, que o amigo ‘de costume recusa-se a mudar uma vírgula do texto que lhe aparece acabado’.

Para Porchat o ceticismo não teve importância pequena na história do pensamento. ‘Penso que teve uma importância enorme. Grandes nomes da filosofia moderna, tais como Descartes, Berkeley, Kant e Hegel, se deram como missão combater o ceticismo e declararam sempre que suas respectivas filosofias eram as únicas capazes de afastar a ameaça cética’, explica. ‘É verdade que, com a exceção de Hume, não houve, depois do ceticismo antigo, grandes filósofos céticos. A influência do ceticismo foi mais difusa, mas nem por isso marcou menos a história do pensamento filosófico. A evolução das ciências humanas e naturais contribuiu bastante para eclosão de uma atitude que eu diria predominantemente `cética´ na filosofia contemporânea da ciência, ainda que, curiosamente, os filósofos da ciência ignorem o fato, por desconhecerem o pensamento cético.’

Os céticos criaram uma escola de crítica ao dogmatismo e de valorização da vida comum. Para eles, a sabedoria não estava no conhecimento teórico especulativo, mas, sim, no conhecimento derivado da experiência e das artes inventadas pelos homens para transformar as coisas em seu benefício. Sexto Empírico e os filósofos gregos céticos do século 2, entre os quais muitos eram médicos, deram uma contribuição considerável para a evolução da medicina na Grécia. Para Porchat os céticos ajudaram a introduzir o vocabulário da casualidade e a racionalidade científica no pensamento da Antiguidade, muito antes do iluminismo. Isso explica o renascimento do interesse pelo ceticismo grego, em curso na Europa e nos Estados Unidos desde os anos 70 e no Brasil desde os anos 90.

Contudo, paira sobre os céticos uma visão caricatural, alimentada pela ideia de que, por rejeitar toda e qualquer pretensão a um conhecimento absoluto ou à verdade de qualquer opinião, o ceticismo tornaria impossível para o cético viver a vida comum, já que toda ação pressupõe juízo e crenças.

‘Alguns dicionários de filosofia evidenciam uma grande ignorância do ceticismo. Os céticos se atribuíram a missão de combater as crenças dogmáticas nas filosofias, nas ciências e também nas pessoas comuns. O senso comum, que é eminentemente relativo e varia de acordo com a época, a comunidade e as classes sociais, sempre esteve carregado de crenças dogmáticas. Assim, o ceticismo não o endossa e, em verdade, o critica acerbamente. O que os céticos pensam é que, não podendo optar por verdades dogmáticas, lhes resta suspender o juízo e viver a vida comum, sem crenças dogmáticas. Ao primado da razão dogmática sucede o primado da vida comum, que os céticos vivem de modo aparentemente igual a todos os homens, mas tendo, perante ela, uma atitude totalmente diferente da que eles comumente têm’, diz Porchat.

Incidente cômico

A calúnia sobre o ceticismo seria outro caso de vitória da versão sobre o fato, uma deturpação destinada a neutralizar a crítica cética. Num artigo famoso, ‘O conflito das filosofias’, Porchat mostra que ‘a história da filosofia brinda-nos com o desfile quase ininterrupto de grandes sistemas que, uns com os outros sempre incompatíveis, se apresentam animados, todos e cada um, da mesma pretensão de representar a verdadeira solução dos problemas do ser e do conhecer, a edição nova e definitiva da realidade’. A filosofia tende a se alimentar continuamente de si mesma e da própria história e não somente das coisas e fatos do mundo exterior. Por isso, corre o risco de transformar-se em um grande jogo de palavras.

‘O cético teme que a filosofia se converta num prodigioso e sublime jogo de palavras se embarca na produção de sistemas e doutrinas dogmáticas e não leva até o extremo o espírito crítico que, por outro lado, sempre explicitamente professou’, explica. ‘O ceticismo se pretende, ao contrário, ser o legatário coerente da racionalidade crítica da filosofia ocidental’. Para o cético, o objetivo da filosofia é servir a vida cotidiana e comum que todos os seres humanos vivem. ‘Sempre entendi que a filosofia é coisa do mundo, artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, descobrindo sua vocação eminentemente mundana, pensando-a a serviço dos seres humanos.’

A atração da filosofia pelo dogmatismo não seria exceção, mas a regra. As filosofias estão todas identicamente empenhadas na elucidação da própria noção de filosofia. ‘Essa pretensão, que lhes é essencial, leva-as necessariamente a uma mútua e recíproca excomunhão e exclusão, na mesma medida em que pertence a cada filosofia o dever de impor-se como única e verdadeira.’ Não são poucos os espectadores que terminam por desencantar-se com a validade da tarefa filosófica, quando descobrem que a história da filosofia é a história do desacordo entre filósofos. ‘Constrange-os constatar que os filósofos, na verdade, nunca dialogam, apenas polemizam. Não se espera da discussão entre filósofos mais do que uma mútua benevolência na clarificação dos fundamentos e raízes da sua opinião irredutível.’

E por que tanto desprezo pelo diálogo e o consenso? ‘Essa é uma questão difícil. O desacordo entre os filósofos provém da pretensão, que quase todos exibem, de oferecer-nos a única resposta correta à pergunta humana pelo ´Saber´. Parece-me que só a psicologia pode sugerir uma explicação, que teria a ver com problemas de autoafirmação, de ambição intelectual e de vaidade humana. Um desejo de ocupar, de alguma maneira, o lugar de Deus, uma necessidade de ser e aparecer como o único oráculo confiável dos deuses. Não são apenas as pessoas comuns que têm necessidade de crer’, pondera o filósofo.

A soberba e a alienação de tantos intelectuais causa espécie. Cegos de não ver o mundo dos homens, surdos de não ouvir o discurso que proferem, muitos se perdem na verborragia. A propósito, Porchat lembra uma historieta antiga: ‘O filósofo Tales observava os astros e, olhos no céu, acabou por cair num poço, provocando o riso de uma jovem trácia, que zombou de sua preocupação pelas coisas celestes, quando o que estava a seus pés lhe escapava. Os filósofos converteram Tales em pai da filosofia e, desde Platão, fizeram desse cômico incidente o símbolo da sublime altanaria do espírito filosófico, que se ergue acima das vicissitudes da vida e cuja profundidade escapa à compreensão do vulgo. Mas cabe outra interpretação. O episódio serve como prenúncio daquela trágica alienação que levou a filosofia ao esquecimento do mundo. Por isso, a sabedoria da pequena trácia merece a minha simpatia.’ 

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Jornalista