O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou na quinta-feira (27/03) o resultado da pesquisa que teve como fim medir os limites da tolerância sexual à violência contra a mulher em território nacional. Entre 3.809 casas visitadas no período de março e junho de 2013, 65% dos entrevistados admitiram concordar com a premissa de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e 58,5% alegaram sonância com a frase “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Percentuais esses que, na natureza de pensamento coerência à época vivida, o grande espaço alcançado manchetes de noticiários de TV, rádio e portais de notícias é plenamente justificado.
Entre tal furor, o jornalista Felipe Moura Brasil publicou em seu blog da revista Veja, no dia seguinte (28/03) o artigo com o título: “A culpa do estupro não é da mulher, mas a da confusão é da pesquisa do Ipea! Essa, sim, merece ser ‘atacada’!” e, de mãos dadas com a dialética, defendeu que os elevados índices foram alcançados muito mais pela ambiguidade trazida em suas perguntas.
Em trecho, ele argumenta:
“Atacar” como? Quase todo o palavreado nacional relativo a abordagens, conquistas e pegações consentidas é baseado em conceitos de guerra, de “caça” ou de futebol, tanto para homens (“os guerreiros”) quanto para mulheres, e nem por isso se está falando em “encoxar”, abusar, espancar ou estuprar.
Quantas vezes homens de bem não dizem aos amigos que “partiram para o ataque” com fulana, querendo dizer que apenas a abordaram de forma mais incisiva, mostrando o quanto querem ter com elas alguma relação?
A linguagem e o público-alvo
Com base na pluralidade de significados presentes no signo “atacar”, Felipe Moura alega que os entrevistados podem ter concordado com um conceito particular do termo e não com a associação a abuso sexual presente na intenção do órgão que fez a pergunta. Se o jornalista, entretanto, se dispõe a tomar como base a amplitude da linguagem, não deve largar de mão a mais elementar noção de linguística? a língua é um produto cultural e, por sua natureza dinâmica, é escrava de um contexto.
Diante desse princípio, dois pontos devem ser levados em conta. Primeiro, a pesquisa desenvolveu 27 frases relacionadas à tolerância contra a mulher, sendo que, delas, todas transitando pelo campo da violência física, verbal ou sexual. Logo, qual seria a lógica de se falar em “flerte”, “conquista” ou convencimento lícito em meio a um universo de perguntas sobre violência? Segundo, vale lembrar que os agentes da comunicação e sua linguagem adequada são fundamentais nessa análise.
A grosso modo: todo mundo sabe que uma pessoa que vai a sua casa com o fim de realizar uma pesquisa formal não vai te tratar da mesma forma que um amigo na mesa de um bar.
Sobre os elementos de linguagem esperados diante de determinados agentes de comunicação, há também uma expansão na relação entre a mídia e seu público-alvo. A exemplo, no noticiário diário Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, cuja audiência buscada está em indivíduos de escolaridade média – maioria nos percentuais da pesquisa do Ipea – a manchete “Mulher é atacada dentro da clínica onde trabalhava” e, em matéria exibida no dia 16 de janeiro de 2014, selecionou o mesmo verbo “atacar” em casos de estupro. Fato semelhante ocorreu no jornal carioca Meia Hora, que divide o perfil da audiência com o noticiário em questão, ao publicar “Atacada dentro de boate”, no dia 27 de março de 2012.
Estratégias falaciosas
Ao fim, em pesquisa geral em órgãos da imprensa na internet, a maioria esmagadora utiliza o “atacar”, ao se tratar de seres humanos, somente em casos violência e domínio de indivíduo em maiores condições de força sobre o outro vulnerável. Em sequência do texto, o jornalista analisou a sentença apresentada: “Se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros” e destacou o caráter genérico do conceito de comportamento feminino e a inclinação popular a relacionar a explicação de um fato a sua consequente apologia.
No mesmo país em que compreender as causas sociais óbvias de um crime, como fez Rachel Sheherazade no caso dos justiceiros, é “incitação” e “apologia” a ele, como diz a comunista Jandira Feghali, do PCdoB (que nunca disse o mesmo dos comunistas), relacionar um mau comportamento vago de alguém à incidência do crime agora é o mesmo que atribuirlhe a culpa.
Associar o principio de que a explicação de um fato nem sempre lhe servir de base persuasiva, no caso, é fechar os olhos para todo o contexto que circunda a história de Brasil de redundantes bases religiosas e rurais. Vale lembrar que, em 1930, o sociólogo Gilberto Freire, em seu Casa Grande & Senzala já elucidava conceitos de sociedade patriarcal cuja imagem do pai de família é a base das relações sociais no país. Princípios esses que há décadas modaliza o comportamento feminino em cima do conceito da mulher de família e, vergonhosamente, ainda reside com força nos lares do Brasil.
Como triste ilustração, outra questão levantada na pesquisa, porém, não citada por Felipe Moura Brasil, afirma 54,9% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “tem mulher que é para casar, tem mulher que é para a cama”.
Mesmo com as claras inclinações políticas trazidas por trás do questionamento do jornalista da Veja sobre a metodologia usada pela Ipea, o debate é sempre frutífero. A fraqueza de seu argumento, entretanto, mora exatamente ao se lançar de estratégias falaciosas da linguagem, base de suas críticas a pesquisa, para camuflar a prática cotidiana que há tempos aprisiona o nosso país em um século que, para se viver de novo, somente se andarmos para trás.
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Luciana Maline é bacharel em Letras e estudante de Jornalismo