Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A identidade de um mito

Um ano após sair de circulação, a revista Newsweek voltou às bancas americanas há exato um mês. E, na capa, trazia um furambaço daqueles capazes de fazer qualquer repórter de tecnologia sentir inveja. A jornalista Leah McGrath Goodman prometia a identidade de Satoshi Nakamoto, o inventor da moeda digital bitcoin, que pode revolucionar o dinheiro. Nos primeiros dias, a reportagem mexeu com a imaginação da internet. Mas aí o homem identificado pela revista negou tudo. A repórter garantiu que estava certa, seus editores se posicionaram ao seu lado. Ele negou novamente. Esta é provavelmente a história de um desastre jornalístico capaz de afundar de vez um veículo que já foi importante. Ou de um feito excepcional em reportagem.

Bitcoin é uma moeda 100% digital. Pode ser convertida em dólares. Por ser anônima, livre do controle por qualquer banco central, serve ao submundo da rede que vende e compra produtos ilegais. Até drogas. Mas serve também de bandeira para grupos libertários, os ultraliberais que se posicionam contra qualquer intervenção do Estado na economia. É uma moeda livre. Hoje só é utilizada por um número pequeno de pessoas. Coisa de nicho. Mas pode ser o futuro das moedas. Seu criador costuma se assinar Satoshi Nakamoto. É um pseudônimo, representa ou um programador brilhante que conhece economia em profundidade ou um pequeno grupo coeso, fechado, que de 2009 para cá não deu qualquer pista sobre sua identidade.

Segundo Leah Goodman, a real identidade de Satoshi Nakamoto é Dorian Satoshi Nakamoto, 64 anos, um engenheiro desempregado nascido no Japão, que vive na Califórnia com sua mãe idosa. Sim: seu pseudônimo é seu próprio nome. No início do ano, a repórter se pôs na frente de sua casa para entrevistá-lo. O senhor se assustou, chamou a polícia. “Eu gostaria de conversar sobre bitcoin”, ela disse. “Não estou mais envolvido nisso”, ele respondeu. “Passei para outras pessoas, são eles que cuidam disso agora.” A conversa, um quê dramática, aparece logo no início de sua matéria. Ele chamou a polícia para retirá-la de sua casa.

Nakamoto não nega as palavras. Diz, porém, que não havia entendido o assunto. Acreditava que a moça perguntava sobre seu tempo de trabalho para o governo americano em projetos secretos.

Dupla negativa

Não é apenas a coincidência do nome e a curiosa troca de palavras que a convence. O engenheiro é programador. Está sem trabalho fixo desde 2001, quando o criador da bitcoin começou a imaginar sua moeda. E, politicamente, se identifica como libertário.

As inconsistências são inúmeras. Entre as poucas informações que se sabe a respeito do Nakamoto mítico está a de sua idade declarada: 38 anos. Mas ele poderia ter mentido. Por ter inventado a bitcoin, estima-se que sua fortuna na moeda que criou esteja avaliada entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão. Como aponta Mike Hearn, um blogueiro conhecido, o engenheiro vive em uma casa humilde e está em dificuldades financeiras agravadas pelo fato de que teve um pequeno derrame, no ano passado. Embora a língua materna do senhor seja o japonês, o sistema bitcoin já foi traduzido para vários idiomas, incluindo o português, mas não para a sua. Dorian Nakamoto, aliás, escreve inglês, em textos espalhados pela rede, com uma série de pequenos erros típicos de quem está na segunda língua. Não capitaliza o “I” de eu, se atrapalha em quando colocar a apóstrofe antes do “S”. Os textos do Satoshi Nakamoto anônimo vêm todos em inglês correto. O pior é que não há qualquer indício de que o senhor conheça criptografia. O criador da bitcoin tem de ser um gênio na área.

Não há crime em ter inventado a bitcoin. Muito pelo contrário. É um feito em programação que traz o respeito dos melhores no Vale do Silício. Mas Dorian Nakamoto negou duas vezes ser o pai da moeda. E o recluso Satoshi Nakamoto, que raramente fala via internet, com proteções que lhe garantem anonimato veio a público negar qualquer elo. A Newsweek, após um mês, insiste que sua reportagem está correta. Não traz, porém, novas provas. Está difícil.

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Pedro Doria, do Globo