Há tempos em que são consagrados, não se sabe ao certo o porquê, certos clichês na linguagem do dia a dia. Já tivemos, há alguns anos, a insuportável expressão “a nível de”, que Aldir Blanc debochou de forma soberba em letra, pura ironia crítica, escrita para melodia de João Bosco, ou vice-versa.
Convivemos há anos e ainda hoje com o uso deturpado da conjunção “enquanto”, em geral utilizada em alguma antipática e presunçosa autorreferência, tal como: “Eu, enquanto profissional da área de comunicação…” E assim por diante.
Sem embargo, há alguns chavões que alcançam mais longe, se multiplicam muito e se enraízam como tiririca no quintal. São aqueles utilizados pelos redatores de notícias; dos repórteres de telejornais aos jornalistas dos impressos diários. Felizmente, a maior parte deles fenece antes de serem consagrados por manuais de redação ou gramáticas atualizadas.
Nessa quadra da prevalência da vida urbanizada, do aumento impressionante do número de automóveis e outros veículos circulando – quando não estão retidos em engarrafamentos ou alagamentos – pelas mesmas ruas e estradas do tempo em que a frota era metade do que é hoje em dia, o número de acidentes cresceu de forma trágica.
Forma mais hedionda
Eis daí a grande frequência com que, ao se noticiar a morte de uma vítima do tráfego da qual o óbito não foi declarado no próprio local do desastre, ouve-se ou se lê o nefasto lugar-comum que, em última – literalmente – instância, responsabiliza o morto iniciando pela mais usada conjunção adversativa: “…mas não resistiu aos ferimentos…”
Como assim? Quem é capaz de resistir, por exemplo, ao esmagamento total do corpo entre ferragens ou às queimaduras provocadas pelo incêndio de um carro em que viajava? Resistir aos ferimentos pressupõe um ato de vontade, o que não tem qualquer sentido lógico, físico ou psíquico. A acepção que o redator useiro e vezeiro provavelmente queira lançar mão para o verbo resistir é, justamente, a de sobreviver, subsistir. E essa dispensa qualquer complemento. Portanto, se o comunicador entender indispensável o uso de tal verbo, que o faça na forma sucinta: “…mas a vítima não resistiu”, isto é, não sobreviveu. Era só o que faltava; culpar a vítima pela gravidade de seus próprios ferimentos sofridos involuntariamente.
Aliás, por mais chocante que pareça essa deficiência profissional dos redatores, há fatos muito mais ultrajantes do que a superável incompetência de mensageiros para transmitir uma notícia, em relação à qual, se concede ao longo da história, eles não têm qualquer responsabilidade apenas por serem seus portadores.
Esse é o caso dos resultados de uma pesquisa de opinião recém-divulgada que indica um percentual majoritário de respondentes que culpam as vítimas pela forma mais hedionda de violência contra a mulher: o estupro.
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Cesar Monatti é aposentado, Salvador, BA