Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre o colapso moral

Em meio às reminiscências dolorosas e acertos de contas (discursivos) com a ditadura civil-militar, ocorreu-me ver uma única referência em jornal à opressão sobre o cotidiano, num artigo em O Globo do professor do CPDOC/FGV Fernando Lattman-Weltman (ver "A ponta do iceberg").

É compreensível: o jornalismo debruça-se sobre eventos objetivos e demarcáveis em contraposição ao ethos ou à atmosfera emocional do cotidiano, que é impalpável. Entretanto, é no fluxo de pequenos afetos instáveis que se fazem sentir os efeitos da grande opressão, seja pela repercussão comunitária dos atos de violência, seja pela ameaça latente que se transforma na atmosfera de terror respirada pelos cidadãos comuns.

Nesse tópico, a imprensa passa a palavra a ficcionistas, cineastas, artistas, poetas. Os notívagos de um bar do Leblon, no Rio, acostumaram-se durante muito tempo a ler na parede um poema de Ferreira Gullar, em que ele descreve a opressão da ditadura como um tigre sentado em seu peito. Era uma imagem que se propagava, até mesmo por gente que não conhecia o poema, às vezes trocando o tigre por elefante e outros bichos. A cada nova animalidade do regime – censura, espancamento, tortura, assassinato –, o animal da metáfora parecia aumentar o seu peso.

É na zona cotidiana de afecções que se pode realmente apreender o fascismo, um conceito político que, se excessivamente formalizado – por exemplo, limitado ao entendimento de política como conflito necessariamente violento pelo controle do Estado –, deixa escapar a real natureza de seu escopo, que é o exercício do poder sobre a totalidade humana do outro.

Movimento contínuo

Na realidade, todo poder é assimétrico, castrador e se manifesta pela força. O fascismo exacerba o poder por meio de uma ação social que, na tipologia weberiana, corresponde ao termo wertrational, isto é, a uma ação racional colocada em função de fins irracionais e desprovida de cuidado com as suas próprias consequências.

A solução apenas “técnica”, movida pela lógica do puro custo-benefício é o germe da “solução final” sob o regime hitlerista. Dá-se aí o que Hannah Arendt chamou de “colapso moral”. O “germe” é apreensível no ethos cotidiano por sintomas e sinais, às vezes parciais, que fazem lembrar o gato de Chesire (em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll), cujo sorriso aparece antes do próprio gato e permanece depois que o bichano vai embora.

Uma narrativa em que se pode apreender essa atmosfera, de modo mais penetrante do que muita explicação teórica, é o filme Una Giornata Particolare (1977), de Ettore Scola. A ação transcorre na Roma de 1930, por ocasião do primeiro encontro entre Hitler e Mussolini, focada no cotidiano de uma família de baixa classe média, em que o marido e os filhos, todos de uniforme fascista, estão prestes a sair para assistir ao comício dois líderes. Sofia Loren está magnífica no papel da dona de casa em contracena com Marcelo Mastroianni, que vive um personagem suspeitíssimo ao regime.

O fascismo que se entrevê na história está além da política pura e simples: é a manifestação de um mundo imóvel, atravessado pela compulsão à repetição, embora com a sugestão de que são possíveis as transgressões, as pulsões de vida. A transgressão vital constitui a grande obsessão do ordenamento totalitário do fascismo, uma vez que este necessita reconhecer-se negativamente em tudo que lhe pareça ameaça, ou seja, o subversivo, o desviante, o crítico.

Deste modo, é preciso sempre reiterar que o fascismo, para além da política, à sombra do dia a dia, é uma espécie de Sociedade dos Amigos do Crime, tal como na fantasia do Marquês de Sade. É um cotidiano alucinógeno para o poder e torturante para as vítimas, ou seja, para a cidadania.

Por isso é importante para o poder conjugado à mídia realizar uma lavagem da História (não tanto dessemelhante da lavagem de dinheiro pelas máfias) em que o acerto de contas com os Amigos do Crime permaneça no nível discursivo dos pequenos arrependimentos quanto aos atos anômicos, da mea culpa malandra ou das sádicas confissões de verdades. Limitada aos atos, a revisão histórica recalca o fato da continuidade do colapso moral na atualidade do poder, em que a corja civil da ditadura permanece a postos para a corrupção e, se for o caso, novas torpezas.

Repetição enfadonha

Seria engraçado se não fosse tão sério, mas é pelo menos grotesco acompanhar a gradação semântica dos jornalões para designar o fenômeno da ditadura civil-militar. No começo, como bem se sabe, tratava-se de uma “revolução”: desviava-se assim o sentido da dialética histórica de resolução das contradições sociais para dar nome à quartelada. Com o passar do tempo, foram aparecendo “movimento militar armado”, “regime militar”, “anos de chumbo” e, finalmente, “golpe militar”.

Na primeira semana deste abril, foi quase hilário ler na primeira página de um jornalão – que foi parte constitutiva da conspiração contra o legítimo presidente da República – a expressão “golpe militar”, assim, de letra cheia. A gradação ainda não chegou a “golpe civil-militar”.

Talvez tenhamos que esperar muito tempo para que as matérias e os artigos tão compulsivos na repetição já enfadonha do dia a dia de espetáculos e vidas de celebridades deem algum lugar a notícias e análises compreensivas do que o cotidiano fascista custou a uma geração inteira. Aliás, continua a custar, porque o colapso moral mudou de tom, mas não arrefeceu.

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro