Desde que foi divulgada a pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre a tolerância social à violência contra as mulheres, o mundo virtual agitou-se. Os veículos informativos correram para anunciar a (re) descoberta. “65% dos brasileiros acreditam que mulher deve se comportar para não ser estuprada.” A pergunta que ecoa nos jornais, blogs e mídias sociais é: afinal, porque, em pleno século 21, os brasileiros ainda são tão patriarcais?
A pesquisa viralizou instantaneamente. Discussões fervorosas se iniciaram, as campanhas feministas se intensificam. Nas mídias sociais inundam imagens de mulheres carregando a placa “Não mereço ser estuprada” – campanha iniciada pela jornalista Nana Queiroz, que, como consequência, foi vorazmente agredida e ameaçada internet afora.
A presidenta Dilma Rousseff se solidarizou com a campanha e repudiou as agressões à jornalista: declarou em sua conta oficial no Twitter que “o governo e a lei estão do lado das mulheres ameaçadas ou vítimas de violência”. A polêmica acerca da pesquisa chegou a reverberar na França, nas páginas do jornal de esquerda Libération.
Como se não bastasse à polêmica, o IPEA divulgou na sexta-feira (4/4) uma errata admitindo que alguns dos resultados estavam trocados. O diretor de Estudos e Políticas Sociais do IPEA pediu exoneração após o erro ser detectado. Mas essa mudança pouco influi na representação do povo brasileiro. Agora, 25% acreditam que usuárias de roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas (ainda é preocupante), mas 58% ainda acham que se elas se comportassem haveria menos estupros.
A sociedade continua patriarcal, as contradições se tornaram ainda mais ambíguas e a ideia de que no Brasil ainda há muito preconceito enrustido, permanece. Se essa pesquisa serviu para algo, foi para criar um novo meme nas redes sociais. Pois a agressiva campanha feminista prova mais que o suficiente que, se não há (e certamente há) algo de errado na pesquisa, há então de muito sério na cabeça dos brasileiros.
A pesquisa
Segundo o arquivo que pode ser examinado no site do IPEA, a pesquisa foi realizada em 3.809 domicílios em 2012, abrangendo todas as unidades da Federação através de um método de amostragem que garante margem de erro de apenas 5%. O método de aproveitamento dos ditados populares e afirmações indiretas – positivas e negativas – funciona como pegadinhas para evitar que o entrevistado entre em piloto automático.
Mais do que isso, a entrevista revela preconceitos enrustidos mas que são caracterizados, segundo trecho da pesquisa, como “ambiguidade de opinião”.
Entre os dados que mais deixam o brasileiro “mal na fita”, 58% concordam com a afirmação “se as mulheres se comportassem, haveria menos estupros”. Parcelas igualmente elevadas da pesquisa concordam que existe mulher para cama e para casar, também que o homem deve ser a cabeça da relação e “mulher que é agredida e continua com o marido gosta de apanhar”.
Até aí estaria tudo certo se porcentagens semelhantes não apontassem que homens que agridem física ou moralmente suas mulheres deveriam ir para cadeia. Se quase 90% dos entrevistados disseram isso, como então 60% desse mesmo universo pode aprovar a violência contra a mulher? A contradição só piora com a recente divulgação do IPEA de que somente 25% dos entrevistados acreditam que a mulher usuária de roupas que mostrem o corpo merece ser estuprada.
Outras informações igualmente preocupantes, a respeito da aceitação da homossexualidade, não foram tão divulgadas assim. Entre 30 a 45% dos entrevistados acham que casamento homossexual deveria ser proibido e mais de 50% se sente desconfortável em ver dois homens (ou mulheres) se beijando em público. Parcela semelhante afirma que “casais do mesmo sexo merecem ter direitos iguais aos casais heterossexuais” e que “o amor entre dois homens é igual ao amor entre um homem e uma mulher”. Por que então o casamento homossexual deve ser proibido?
Conclusão
O IPEA afirmou em texto divulgado em seu site que a pesquisa, baseada numa semelhante feita na Colômbia, tinha intenção de avaliar as práticas e percepções sociais a respeito da violência de gênero. Mas acabou se tornando uma avaliação inicial quanto à adesão maior ou menor da população a temas como patriarcalismo, racismo, sexismo e violência contra as mulheres. Não foram divulgados dados a respeito da questão racial. Mas os demais dados, inclusive a conclusão do IPEA, apontam que a classe econômica e escolaridade alta são diretamente proporcionais à afirmação por direitos igualitários.
A presença no Sul-Sudeste ou nas metrópoles também aparece como fator positivo. Embora mais de 50% dos entrevistados estejam nas regiões Sul e Sudeste e que, de fato, essas regiões abocanhem grande parcela populacional do Brasil, pouco se pode inferir sobre regionalismo, uma vez que o instituto não divulgou a porcentagem dos outros estados.
Embora seja uma pesquisa classificada como inicial, seria interessante dispor esses dados. O que ajudaria a esclarecer alguns pontos a respeito de influências de ordem social, econômica ou escolar, e até conferir um pouco de dignidade aos participantes dessa pesquisa, já que as regiões Sul e Sudeste não apenas são as mais ricas como também as mais urbanas e escolarizadas do país.
Segundo a pesquisa, quando foram feitas menções claras a violência física ou moral contra mulheres, os entrevistados repudiam as afirmações, mas quando foram indiretas as menções, as opiniões mudaram. O mesmo acontece em relação à aceitação dos homossexuais. O resultado final é uma grande contradição, que foi classificada como “ambiguidade”. E quando isso é posto em jogo, parece pouco provável que essa parcela (segundo a lógica do próprio IPEA) realmente esteja num limbo moral, onde é difícil distinguir o certo do errado.
Embora fosse intenção do instituto driblar as barreiras mentais do povo brasileiro para garantir uma resposta sincera, o que se pode extrair desses dados é que: ou há algo de errado com a pesquisa do IPEA, ou os entrevistados foram cínicos e agiram de má fé. Foi provado que o brasileiro já descobriu que a lógica patriarcal é condenável, mas não está disposto a assumir os preconceitos. Também foi provado que o IPEA precisa reestruturar seus métodos avaliativos e analíticos se quiser manter credibilidade. No entanto, alguns saldos foram positivos.
O erro grotesco mostrou que apesar da predominância da opressão patriarcalista e sexista, as mulheres estão se organizando, se conscientizando e lutando. A rápida viralização e adesão da campanha “Não mereço ser estuprada” é uma vitória das mulheres. As constantes discussões mostram que, apesar da aura de ignorância que ronda as mesas de bar e as páginas de mídias sociais, temas sérios podem ser discutidos fora do armário da elite intelectual. As pessoas podem se conscientizar e a seriedade também pode ser difundida.
Nem tudo está perdido. O país da Copa, ainda pode ser o país do futuro.
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Heitor Oliveira é estudante da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia