Não diria surpresas, mas espantos. O primeiro foi saber, na semana passada, que 65,1% da sociedade brasileira concordava com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. O segundo foi ser informada, na sexta-feira (29/03), que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autor da pesquisa dos 65,1%, revertera esse número para 26%. Era uma errata no resultado mais divulgado da Tolerância Social à Violência contra as Mulheres, à qual tantas mulheres reagiram com a hashtag “EuNãoMereçoSerEstuprada”. O IPEA estava nu.
“Foi um erro rústico no processamento e na publicação”, diz a socióloga e pesquisadora Fátima Pacheco Jordão. Com décadas de experiência na análise de pesquisas, ela não desqualifica a aplicação dessa última. Muito menos o tema central. São meio milhão de estupros e violências contra a mulher anualmente, afirma, e isso apenas os casos notificados. Os não notificados poderiam abrir uma conta de 14 mil por dia.
Para Fátima, mãe de duas filhas e conselheira do Instituto Patrícia Galvão, a repercussão toda só incentiva mais enquetes. “O estupro é um fenômeno que está no eixo do machismo, não é ponto de curva.”
“Mulher que apanha é porque provoca”
Como analisar o erro na pesquisa do IPEA?
Fátima Pacheco Jordão – O erro foi grosseiro e rústico porque não é um erro na aplicação da pesquisa, mas no processamento e na publicação. Normalmente a gente pensa em erro por causa da amostra, por causa das desproporções, dos vieses e assim por diante. Mas não é um erro técnico, é de edição. Uma conferência simples o filtraria imediatamente. Acho que perceberam o equívoco porque houve uma enorme repercussão na sociedade, com a presidente se manifestando no Twitter, mulheres improvisando frases e usando seu corpo para expressar revolta e reação contra esse dado.
Quanto isso compromete a imagem do instituto?
F.P.J. – Não compromete totalmente, mas compromete. O IPEA tem adversários políticos, os conservadores vão desqualificar a pesquisa porque ela denuncia coisas que as pessoas acham que não devem ser denunciadas, briga de marido e mulher tem que se restringir à casa e por aí vai.
Mas, uma vez detectado o erro, o tema não perde a relevância.
F.P.J. – Claro que não. É exatamente o contrário: a repercussão evidencia que esse tipo de tema deve ser mais e mais pesquisado. Não se está metendo a colher, mas metendo o dedo numa ferida da sociedade brasileira. Tenho aqui uma pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão com o Data Popular encomendada por oito instituições, entre elas o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais. Ela é de maio de 2013, um ano atrás, portanto. Entre as frases, há uma que se aproxima daquela que gerou a confusão na pesquisa do IPEA: “Mulher que apanha é porque provoca”. 65% discordaram, 17% concordaram e outros 17% nem concordaram nem discordaram.
“Homem tem de ser preso”
O que isso significa? Que a sociedade brasileira está indo na direção certa?
F.P.J. – Significa que as pessoas não compram essa ideia. Isso está muito claro na pesquisa. “Bater na parceira não deve ser crime” era outra frase. 88% discordaram. Ou seja, a pesquisa tem algo na mesma direção do “homem que bate deve ir para a cadeia” do levantamento do IPEA. Ao mesmo tempo, 85% de homens e mulheres concordam que as mulheres que denunciam seus maridos e namorados agressores correm mais risco de serem assassinadas por eles. Isso expressa que a situação está muito pior do que aparenta.
O que comprova a subnotificação.
F.P.J. – Evidentemente. No Brasil, meio milhão de estupros e violência contra a mulher ocorrem anualmente. Meio milhão notificado, isto é, cerca de 1.400 por dia. Se isso corresponde apenas aos 10% que se sabe serem notificados, multiplica-se por 10 e chegamos a 14 mil estupros e violência diários. O fenômeno está no centro do machismo, não na beirada da patologia. Está no eixo da cultura patriarcal, não é ponta de curva. É o controle no limite físico da mulher – ou por agressão ou por estupro.
Na pesquisa do IPEA já revista, quando se fala em violência factual há uma reprovação dos entrevistados. Mas, quando usaram ditados populares como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, apareceu uma aprovação. Isso não lhe parece contraditório?
F.P.J. – Não é contraditório. As escalas é que têm conteúdos diferentes. A pesquisa traz o lado conformista, que parte de ditos populares, mitos sociais, frases cujo conteúdo é ultrapassado e com as quais é fácil concordar até metaforicamente. Sim, “roupa suja se lava em casa”, “em briga de homem e mulher ninguém mete a colher”. Agora “homem tem de ser preso?” Tem. “Homem pode gritar e xingar as mulheres?” Não. Enquanto é ideológico, refletido pelos ditados, as pessoas tendem a ser mais tolerantes com a violência. Quando a opinião é baseada na prática, fica mais clara a resistência. Essa pesquisa e a do Instituto Patrícia Galvão não retratam uma sociedade eminentemente conservadora, mas uma sociedade em transformação.
“A internet está fazendo uma revolução”
É fundamental fazer uma pesquisa por sexo? Descobrir o que disseram as mulheres e o que disseram os homens? Isso não apareceu na pesquisa do IPEA.
F.P.J. – Foi algo que achei falho na análise dos dados – e aí não tem a ver com a formulação. Em todas as pesquisas que conheço ligadas a tensão de gênero, seja mulher na política, seja violência, seja direito das mulheres, existe uma resposta muito maior das mulheres em relação à dos homens, mostrando a sensibilidade delas para a questão. Na pesquisa do IPEA, em algum momento eles afirmam que há a chance de as respostas femininas serem 1,7 mais altas, quase o dobro das masculinas. Um exemplo hipotético e aproximado: se entre mulheres a concordância for de 40%, entre homens será de 68%. Então, nos graus de licença para a violência, não se pode concluir que as mulheres são machistas sem que os dados sejam analisados por sexo separadamente. Se cortar a pesquisa por gênero com a diferença que eles mesmos apontam, há coisa aí. Ela está retratando uma fotografia na qual aparecem uma zebra e um cavalo. Teria necessariamente de ser analisada dos dois pontos de vista. Porque são dois pontos de vista conflitantes.
Esse conflito tem se acentuado?
F.P.J. – Em relação aos direitos das mulheres, sim. Está se alargando. Mais ou menos como estão se alargando as distâncias entre as pessoas mais pobres e mais ricas com relação a políticas sociais. A expressão da violência é derivada do inconformismo dos detentores do poder, no caso os homens, com a capacidade das mulheres de expressar, enunciar e ver a violência como fenômeno social. Elas a enxergavam como problema individual: será que eu olhei de maneira enviesada para algum homem? Será que a minha saia estava mais curta? Esses controles estão perdendo a eficácia.
Qual é a potência de uma hashtagcomo EuNãoMereçoSerEstuprada na diminuição desse controle?
F.P.J. – É enorme. Não precisa juntar trinta pessoas na frente do Theatro Municipal. Você tira um selfie, escreve algumas coisas no corpo e, no caso dessa jornalista, ainda pode dizer: “Meu marido me ajudou”. Outras fotos apareceram, isso ganha uma tremenda difusão. A internet está fazendo uma revolução para a qual a sociedade talvez não esteja preparada, e não é só no caso do gênero.
“A nossa sociedade tem um verniz de igualdade”
Por que não estaria preparada?
F.P.J. – Há um processo de aprendizagem desde o processo formal escolar até a literatura, passando pela ficção de massa – a novela –, que ainda é muito retrógrada. Essa mulher que está na propaganda representa você? Não. A mulher é sempre apresentada como bobinha, imóvel, manipulável, o marido é quem está na ponta da mesa e define como será a assinatura da TV.
Ou é apresentada como objeto de sedução. Vide a propaganda “trem é bom para xavecar”.
F.P.J. – É de um insulto…! E aí vem a frase do secretário de Estado de Transportes Metropolitanos (Jurandir Fernandes) sobre a repercussão desses casos de abuso no metrô: “Como não tinham nada para falar, entrou a história do assédio, assédio, estupro, estupro”. O relato das mulheres que são assediadas no metrô é uma coisa tremenda. Isso tem anos e anos e anos. Até se inventou vagão feminino.
A jornalista que divulgou a hashtagdisse que, cinco minutos depois de postar, recebeu ameaça de estupro; dez minutos depois, aparecia num site pornô pedindo para ser violentada. Como avaliar essas reações virtuais?
F.P.J. – A nossa sociedade tem um verniz de igualdade entre homens e mulheres com regras muito férreas de agressão, pressão e desqualificação por parte deles em relação a elas. Tudo o que ultrapassa os limites impostos pelos opressores gera comentários na internet muito próximos aos de rodas de bar. O manejo disso é um processo de aprendizagem. Mas, efetivamente, os graus de liberdade que um indivíduo tem hoje de expressar o que pensa, para o bem e para o mal, consistentemente ou não, é enorme. A internet talvez seja a expressão mais crua do ambiente cultural.
“Há campanhas para que o aborto não seja feito”
É sabido que um acusado de estupro corre grande risco de ser violentado na cadeia. O que leva a sociedade a aceitar isso? Sede de vingança?
F.P.J. – Nesses datenas da vida, programas que passam à tarde, a desqualificação do agressor está quase igual à desqualificação da mulher. O estuprador é visto como monstro, o que não resulta num aprendizado. Ao contrário: se confirma a polarização. Mas eu não vejo um grande debate sobre isso. Nunca vi. Acho coerente com o que pesquisei no início da década de 1990, durante a campanha para a Prefeitura de São Paulo em que se opunham Suplicy e Maluf. Numa entrevista na rádio, o Maluf disse o seguinte: estupra, mas não mata. Demorou muito para o PT reagir, uns 15 dias. O partido testou isso e descobriu que os homens se revoltavam mais do que as mulheres com a frase do Maluf, mas dentro da ótica machista: eles viam a sua mulher sendo estuprada. Então a ameaça que o estuprador representa para o homem é a ameaça ao machismo. Quanto mais fundo se mergulha nesse poço, mais oprimida se enxerga a mulher, real e virtualmente.
Falta analisar as consequências do estupro para uma mulher?
F.P.J. – Falta. Você imagina as consequências para a vida? Não tem que pesquisar isso? Há repercussão em todas as áreas – na saúde, por exemplo. DSTs, gravidez precoce, abortos feitos em condições clandestinas… Porque, embora o aborto seja legal nessa condição de estupro, há campanhas para que não seja feito. Expõe crianças de 12, 13 anos, especialmente quando violentadas por pais, tios, padrastos. Agora veja: estamos numa época em que a Igreja resolveu peitar a pedofilia. Quer mais progresso que isso?
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Mônica Manir, do Estado de S.Paulo