Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberdade para defender a ditadura?

Dois ou três episódios recentes tematizam a pergunta: liberdade para quem diverge de nós?, liberdade para quem defende a ditadura? Amigos discutem. Vou analisar esta questão sem me perder nos fatos, porque estes só respondem se os casos se enquadram ou não na regra geral, e é esta que precisamos definir.

A liberdade de expressão é suprema na democracia. Tanto o é, que está se emancipando da liberdade de imprensa. Esta última é exercida por organizações de mídia. A de expressão começava com o maluco inglês falando num caixote do Hyde Park e hoje está nas redes sociais.

A liberdade, dizia a líder marxista Rosa Luxemburg, é sempre a liberdade de quem pensa diferente de nós. Não pode haver liberdade só para o “nosso” lado. A liberdade incomoda. A democracia não é um regime da unanimidade. É o regime no qual os leitores convencidos de que o PT é um partido de ladrões veem gente votar nele, e os que acusam o PSDB de indiferença aos dramas sociais sentem igual frustração… Dependendo de nosso grupo social, uma dessas convicções pode predominar, a ponto de só convivermos com gente que pensa como nós. Mas a divergência existe e é essencial.

Ensino superior deve educar, não pregar

Todavia, a liberdade de expressão inclui o direito de incitar ao crime? Não. Incitar a cometer um crime é crime. Não há liberdade de expressão para pregar “mate policiais”. Então, por que seria livre pedir a repressão aos negros, a desigualdade entre homens e mulheres, a cassação de direitos de quem não é criminoso, a tortura, prisão e assassinato de quem não concorda conosco? Defender a ditadura é pregar que se cometam crimes contra muitas pessoas; mais que isso: é defender que se cometa, contra a sociedade inteira, o megacrime que é privá-la do direito de escolher. É pregar crimes de altas proporções. Tanto assim que no Brasil é ilegal o racismo, nos EUA se punem crimes de ódio (como a homofobia) e na Alemanha, a pregação do nazismo.

Essa linha divisória deve ser nítida. Devem ficar claros os temas cuja prédica a democracia tipifica como crimes. Deve se evitar o julgamento por inferência (“se disse isso, significa que também disse aquilo…). Mas não esqueçamos, aqui, os dois princípios em choque. Um é a liberdade de expressão. O outro é o direito de cada um a não ser vítima de crime. A liberdade de falar e agir cessa onde fere o direito do outro à integridade física e pessoal. Por isso defender a tortura e mesmo a desigualdade dos gêneros pode constituir crime.

Não entro no detalhe dos casos recentes, como o do professor de Direito da USP. Entrar neles é checar se os fatos precisos se ajustam ou não aos princípios éticos que validamos. O que quero é esclarecer estes últimos. Por exemplo, se alguém acredita que a democracia deve admitir até os discursos contra a democracia (posição oposta à minha), ele avaliará de outra forma o caso do professor. Mas a diferença dirá respeito aos princípios, não aos fatos. E cada país legislará do seu modo sobre os crimes de pregação de ódio. Com nosso histórico de racismo e ditadura, esses dois temas exigem, de nossa parte, uma ação mais firme do que em países que não viveram tais experiências de desumanidade.

Exponho agora a posição contrária à minha. Vários entendem que até mesmo os discursos do ódio devem ser permitidos, porque a discussão pública dará conta deles. Eles creem profundamente nas virtudes do debate. É uma posição respeitável, iluminista, de crença na razão. Mas a meu ver a pregação do mal não é vencida tão facilmente; ela persuade muitos. Ela inclui apelos emocionais baixos, como a invocação do sobrenatural, que inibem o uso da razão. Geram danos irreversíveis em vulneráveis. Nos Estados Unidos, em nome dela, seitas africanas têm pregado que crianças que nascem com certas deficiências não têm alma. Imaginem o que os pais fazem com elas.

Acrescento. Primeiro, não é certo um professor realizar prédica político-partidária, ou religiosa, em aula. Pode opinar fora da sala. Dentro dela pode argumentar politicamente sobre assuntos de seu conhecimento, mas jamais saindo da esfera racional. Opinião e preferência são direito dele, como de qualquer cidadão; sua diferença, como professor, é que contribua para a formação de seus alunos, o que não passa por crenças mas por conhecimento. Esta muralha da China entre a pessoa privada, que tem crenças ou preferências, e a do professor, que tem um compromisso com o conhecimento, está determinada em lei no caso das instituições públicas de ensino, mas é um imperativo moral para todo professor, inclusive nos estabelecimentos privados. Sem essa separação, não se educa: se adestra.

Segundo, devemos rever se deve ou não haver discursos ou debates políticos nos campi universitários. No fim da ditadura, eram frequentes. Eram vitais. Veio depois uma lei proibindo o uso de prédios públicos para campanha eleitoral, entre os quais se incluem os das melhores universidades do Brasil, quase todas estatais. Essa proibição deve ser mantida, ou devemos excetuar as universidades, por serem ambientes em que se formam pessoas que farão o País de amanhã? Se for permitido, isso deve estar em lei, e precisa se garantir a pluralidade de posições. Outra pergunta: deve valer também para as instituições privadas? Ora, se o fim de umas e outras é a educação, o debate deve existir se tiver teor educativo, e não, se não o tiver. Nas privadas, acontece de ser convidado só um lado, o do dono. Nem essa nem qualquer outra discriminação irracional deve existir. Ou proíbe para todos, ou libera; e neste caso com equilíbrio, pelo menos, das principais posições.

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Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo