Muitos apontam o golpe de 64 como resultado da instabilidade institucional e desordem provocadas pelo próprio governo João Goulart.
O Brasil vivia um conflito ideologicamente polarizado. Greves em diversos setores, como a de marinheiros, sublevação de tropas, comícios com bandeiras de partidos então ilegais (PCB) e palavras de ordem radicais assustaram parte da sociedade. A conspiração se generalizou e atravessou fronteiras. Mas o único que respeitou as regras estabelecidas foi justamente ele, o desordeiro Jango – latifundiário acusado de ligações com comunistas, que empregou o diplomata San Tiago Dantas, o banqueiro Walter Salles (ministro da Fazenda), e o empresário José Ermírio de Moraes (ministro da Agricultura).
Para uma democracia que não tinha completado a maioridade, depois de séculos de poder colonial, monárquico, regimes turbulentos, República Velha e Nova, outra ditadura, que vivia sob regras da Constituição de 1946, a rebelião de sargentos da Marinha e Aeronáutica, inconformados com a decisão do STF de não reconhecer a elegibilidade de sargentos para o Legislativo, e conflitos agrários levantaram o clamor pela intervenção armada.
Como se hoje o estado democrático não sobrevivesse à ocupação de um terreno na M’Boi Mirim, de uma fazenda improdutiva, queima de pneus em estradas, bloqueios de caminhoneiros e índios, greves de professores, taxistas, agentes penitenciários, e a uma manifestação de PMs, com trocas de tiros com seus colegas da Polícia Civil, cercados por bandeiras vermelhas de partidos de esquerda e centrais sindicais, a quadras do palácio do governo. Conflitos que aprendemos não temer e negociar democraticamente.
Os EUA encararam o assassinato de um presidente, de líderes de direitos civis e a renúncia de outro, a França ficou em chamas em maio de 68, a Alemanha confrontou o Baader Meinhof, o Reino Unido, o IRA, a Itália, as Brigadas Vermelhas, a Espanha, o ETA, mas não penhoraram sua joia mais valiosa, a democracia.
A adesão ao golpe
Por aqui, ela não resistiu ao Comício da Central do Brasil. Jango pode ser acusado de frouxo por uns, inábil por outros. Não resistir e fugir do Brasil no dia 2 de abril decepcionou aliados. Incendiar com palavras e gestos um ambiente já volátil atiçou a conspiração. Mas, do começo ao fim, ele cumpriu a lei.
Numa época em que se votava separadamente para presidente e vice, Jango foi eleito vice-presidente em 1955 com mais votos do que o presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Na eleição de 1960, foi reeleito vice-presidente de Jânio Quadros.
Em 25 de agosto de 1961, Jânio renunciou de surpresa. Jango estava na China. Os ministros militares Sílvio Heck (Marinha), Odílio Denys (Exército) e Gabriel Grün Moss (Aeronáutica) ameaçaram derrubar o avião do novo presidente por direito, caso voltasse. O líder da Câmara, Ranieri Mazzilli, foi empossado presidente.
Começou a “campanha da legalidade”, para fazer cumprir o que a Constituição mandava. Parte do Congresso queria Jango, que esperou em Montevidéu a solução da crise. Militares não cederam. Tentou-se a conciliação: mudar o regime político brasileiro. Em 2 de setembro de 1961, o parlamentarismo foi aprovado. Tancredo Neves se tornou primeiro-ministro.
Em 1962, eleições renovaram o Congresso. Foi convocado um plebiscito em janeiro de 1963, para definir se o país voltaria ao regime anterior. O presidencialismo ganhou de lavada, e Jânio tomou o poder de fato e direito. Tinha dois anos para governar. A eleição de 1965 estava garantida e seria uma barbada: Juscelino ganharia com folga, voltaria à Presidência.
Jango lançou o Plano Trienal: reformas institucionais para controlar o déficit público, manter a política desenvolvimentista, instaurar a reforma fiscal para aumentar a arrecadação do Estado e limitar a remessa de lucros para o exterior, reforma bancária para ampliar acesso ao crédito de produtores, nacionalização de setores de energia elétrica, refino de petróleo e químico-farmacêutico, direito de voto para analfabetos e militares de patentes subalternas, desapropriação das áreas rurais inexploradas nas margens das rodovias e ferrovias federais, reforma educacional para combater o analfabetismo com método Paulo Freire, abolição da cátedra vitalícia.
Uma pesquisa feita no período, encontrada recentemente nos arquivos do Ibope, mostra que 59% dos entrevistados eram a favor das medidas anunciadas no Comício da Central do Brasil. Outra mostra que 49,8% admitiam votar em Jango, se ele pudesse se candidatar à reeleição, contra 41,8%.
Em 20 de março de 1964, o general Castelo Branco informou a oficiais do Exército que aderia ao golpe eminente. Foi a senha de que os conspiradores precisavam. O embaixador americano Lincoln Gordon recomendou remessa clandestina de armas e petróleo, e sugeriu que o governo americano preparasse uma intervenção. O presidente Lyndon Johnson autorizou o envio de uma frota ao Brasil. A missão: invadir Pernambuco, para ajudar o golpe, se houvesse resistência. Seria a primeira vez na História que uma potência estrangeira nos invadiria.
Quem feriu a ordem institucional?
Na madrugada de 31 de março, o general Olímpio Mourão Filho iniciou a movimentação de tropas em MG, incentivado pelo governador Magalhães Pinto. Em 1º de abril de 1964, Jango foi a Brasília e, depois, para o Rio Grande do Sul. No dia 2 de abril, numa manobra da mesa do Congresso, declarou-se a vacância do cargo, já que o presidente, em Porto Alegre, não estaria em território nacional. Mais uma vez, o presidente da Câmara, Mazzilli, assumiu a Presidência.
Brasília foi cercada pelo Exército. A junta que tomou o poder, general Costa e Silva, tenente-brigadeiro Correia de Melo e vice-almirante Rademaker Grünewald, instaurou o Ato Institucional, cassando o gabinete e políticos aliados do governo Jango. O resto você já sabe.
Pergunta: Quem realmente feriu a ordem institucional?
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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo