Os 50 anos do golpe militar foram marcados pelo estarrecedor depoimento do coronel reformado Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade, em que reconhece ter torturado, matado e ocultado cadáveres de presos políticos na ditadura. Sem demonstrar qualquer arrependimento, afirmou ter torturado muitos, defendendo a tortura como método de investigação acompanhado do requinte da mutilação de cadáveres para evitar que fossem identificados, não deixando qualquer rastro. “Mesmo com tantos anos de advocacia, me choquei com a descrição da mutilação das arcadas dentárias e digitais”, disse o ex-ministro José Carlos Dias, integrante da Comissão.
Pesquisa Datafolha revela que 46% dos brasileiros são a favor de anular a Lei de Anistia de 1979, para que possam ser julgados e presos os que praticaram tortura, assassinatos, sequestros e outros crimes durante a ditadura. Aponta a pesquisa que 37% são contra alterar a lei e 17% não sabem responder (“Maior parte da população quer anular Lei de Anistia”, “Folha de S.Paulo”, 31/03/2014). Em 2010, o resultado era inverso: 45% eram contra alterar a lei e 40% eram a favor.
Como enfrentar as graves violações de direitos humanos perpetradas no passado? Como ritualizar a passagem de um regime militar ditatorial a um regime democrático?
Em 2010, a Corte Interamericana condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da Guerrilha do Araguaia durante as operações militares da década de 70. Sustentou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos nem para a identificação e punição dos responsáveis. Respaldou sua argumentação em sólida jurisprudência internacional, destacando também decisões judiciais emblemáticas invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Colômbia.
Direito à verdade
A racionalidade da Corte é clara: leis de anistia constituem um ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e aos seus familiares o acesso à Justiça, em direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações. Reflexo do impacto da sentença da Corte foi a adoção da lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade e da lei que garantiu o acesso à informação, ambas de 18/11/2011.
O direito à verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva. Individual ao conferir aos familiares de vítimas de graves violações o acesso à informação sobre o ocorrido, permitindo-lhes honrar os seus entes queridos, celebrando o direito ao luto. Coletiva ao assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas. Para a ONU: “O direito à verdade abrange o direito de ter um conhecimento pleno e completo dos fatos ocorridos, das pessoas que deles participaram, das circunstâncias específicas e das violações perpetradas e sua motivação. É um direito individual que assiste tanto às vítimas, como aos seus familiares, tendo ainda uma dimensão coletiva. Está estritamente relacionado ao Estado de Direito e aos princípios de transparência, responsabilidade e boa gestão pública em uma sociedade democrática.”
Fundamental ainda é o dever do Estado de prevenir graves violações, mediante garantias de não repetição – o que demanda reformas institucionais, sobretudo nos aparatos da segurança e da Justiça. Para a ONU, impõe-se a exclusão de agentes diretamente envolvidos em violações de direitos humanos do passado nos serviços públicos (o chamado vetting). O vetting permite a sanção dos perpetradores de graves violações, a prevenção de ocorrência de futuras violações e reformas institucionais. Contribui para reformar instituições, atribuindo responsabilização individual àqueles envolvidos em abusos de direitos do passado, assegurando maior legitimidade, credibilidade e integridade às instituições públicas.
Que os 50 anos do golpe fomentem efetivos avanços, permitindo ao direito à verdade impulsionar a luta por justiça e por reformas institucionais, rompendo com um continuísmo autoritário que ainda debilita a construção democrática.
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Flávia Piovesan é professora da PUC-SP e procuradora do estado