Eu sou um oficial do Exército brasileiro. Estou numa sala de interrogatório, cumprindo minha função, a de obter informações do inimigo. Por qualquer meio. Fui designado para fazer isso pelos meus superiores e sou um bom soldado.
O inimigo à minha frente é um ser indefinido. Humano não é. É um subversivo, um desalmado, uma coisa abjeta. Ele e os outros animais como ele querem que o Brasil também seja uma coisa abjeta. Se ele não estivesse aqui, estaria na rua, matando e conspirando, construindo a coisa abjeta. Mas está aqui. Frente a frente comigo. Tem a informação que eu quero e não tem como fugir de mim.
Minha função é arrancar a informação dele por qualquer meio, para que o Brasil se livre deles. Para que a coisa abjeta não se crie. Ele é um ser sub-humano, mas um ser sub-humano falante. E vai falar. Por qualquer meio, vai me dizer o que eu quero saber. Tenho toda a autoridade que preciso para estar aqui, frente a frente com ele. Sou autorizado por cima, pelos meus comandantes até o mais graduado, por baixo pelo meu próprio asco, e pela História. Posso fazer o que quiser com o animal.
Coisa abjeta
É isto, enquanto salvo a pátria também estou exercendo a minha liberdade ao extremo. Não há limite para o que estou autorizado a fazer para arrancar dele a informação que preciso, que o Brasil precisa para que eles não vençam.
Posso até matá-lo, está previsto. Por descuido ou por intenção, não importa. Depois é só cuidar para que ele nunca seja identificado, quebrando sua arcada dentária e cortando seus dedos.
Meu poder sobre ele, sobre a sua vida e sua morte e a integridade final do seu cadáver, é absoluto. Total. E ali está ele, um ser reduzido à dor e ao medo, um bicho assustado. Talvez já tenha se borrado. Meu poder se estende até ao movimento dos seus intestinos!
Se ele fosse um ser humano, e não uma coisa abjeta, também teria uma noção filosófica do momento que estamos vivendo, ele e eu. Este sentimento de liberdade completa – a minha do meu poder total sobre ele, a dele da definição do seu destino nas minhas mãos – seria de ambos, perante a História. Diante da posteridade.
A posteridade… É, tem isto. Se a História não nos der razão, a posteridade vai nos pedir explicações. Vai querer que eu tenha remorso. Vai insistir que eu tenha remorso. Vai até me perdoar se eu tiver remorso. Mas, se eu sou um sádico que deve explicações, se o que me move não é o horror à coisa abjeta que ameaça a pátria, então toda a cadeia de comando que começa lá em cima e termina no pau de arara é sádica e deve explicações. E deles não se ouve um pio de remorso. Eu? Estou apenas cumprindo ordens.
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Luis Fernando Veríssimo é escritor