Você não tem ideia do que era o Brasil em 1962. Andávamos de bonde, o Rio – então uma “cidade maravilhosa” – era mais importante do que São Paulo; Niterói, onde eu morava e insisto em morar, tinha um restaurante chamado Petit Paris onde Sergio Mendes tocava piano; só rico andava de avião e você ia trabalhar de paletó e gravata. A praia de Icaraí tinha águas transparentes e, na barca para o Rio, víamos golfinhos. A televisão ainda não importava, por isso “íamos ao cinema”, escolhendo ver filmes franceses, americanos, italianos, russos ou alemães. Tomávamos chopes, pois não havia essa frescura de vinho de hoje. As ruas eram vazias de veículos, comprávamos linhas de telefone e pedia-se um interurbano quando se queria falar para o Rio…
Todo intelectual era “conscientizado” e “de esquerda” de modo que a “politização” se tornou uma chatice e uma religião que, em poucos minutos, deflagrava discussões amargas porque quem não queria as “reformas de base” e sonhava em revolver as “estruturas arcaicas” do Brasil, era xingado de “reacionário” e “alienado”.
Eu era recém-casado com uma moça linda, tinha um filhinho e estava alugando um apartamento. Fomos falar com o proprietário, um português abastado que vivia de alugar imóveis.
– Muito prazer. Quanto o senhor quer de aluguel?
– Qual é a sua profissão? Respondeu o dono.
– Sou professor e pesquisador do Museu Nacional, retruquei orgulhoso como todo pobre.
– Então você não vai poder me pagar! O aluguel é alto para um professor.
– Passar bem! Despedi-me injuriado.
A experiência confirmava minhas convicções. Eu havia falado com um explorador do povo. Naquele dia, vituperei contra o capitalismo e, apaixonado pelo conceito de “confisco”, sonhei com a revolução que iria mudar o País, dando apartamentos, casas e sítios para os despossuídos. Apaixonei-me pela palavra “confisco” muito usada pelos líderes políticos daquele momento. Um deles, poeta conhecido e admirado, disse para mim num momento de regozijo revolucionário: “Agora, só falta instalar os sovietes”.
Corporativismo e aparelhamento
Discuti muito com meu pai (que havia abandonado a Escola Militar) o qual, não cansou de me advertir: um dia, os militares tomam conta…
Sorri de sua “falsa consciência”.
No domingo seguinte, saí acintosamente de uma missa no meio de um sermão de um padre reacionário. Redefini minha relação com a religião e aderi ao “agnosticismo” de um querido professor. Era, agora, um materialista devidamente antenado com o meu tempo de conscientização.
Esse ato revolucionário, único de minha hoje longa vida, me custou uma briga sartriana com minha mulher. O quarto foi testemunha de uma discussão filosófica, deixando de ser o palco do amor. Eu assinalava que não era um “pequeno-burguês”; ela pensava no leite do nosso filho.
Na margem esquerda do Rio Tocantins, perto da então cidade de Itupiranga, no Pará, eu esperava um barco. Ali, vivia numa palhoça miserável um coletor de castanha. Resolvi conscientizá-lo e sugeri que eles precisavam fundar um sindicato. O homem me olhou assustado e perguntou: o que é um sindicato.
Eu, politizado, não sabia.
Em setembro de 1963, embarquei para os Estados Unidos com uma bolsa da Fulbright Comission. Ficaria um ano acadêmico em Harvard, estudando antropologia com um mentor inglês, ali radicado. Tornei-me amigo de uns poucos esquerdistas, que estudavam em Harvard e no MIT. Lembro ao leitor que, àquela época, ouvíamos notícias pelo rádio e lendo jornais, que chegavam com semanas de atraso.
No dia 2 ou 3 de abril, um amigo me telefonou e informou que a “nossa revolução cubana havia começado”. Imediatamente, comuniquei o fato a um vizinho, estudante de Física. Uns 20 minutos depois, o mesmo amigo me comunicou que o Brasil sofria um “golpe militar”. Pensei no meu pai.
Deprimido, perguntei-me de onde vinha o poder dos golpistas se nós somente falávamos em operários, camponeses, estudantes e no povo oprimido e simpático à causa revolucionária? Como não havia resistência? Onde estava o dispositivo militar? Havia algo errado na minha teoria. Ali nasceu o meu interesse no carnaval e no papel dos elos pessoais no Brasil.
Voltei em setembro de 64 para novamente voltar a Harvard em 67, onde fiquei até 70.
De 70 a 2014, muita água correu debaixo da ponte e hoje temos a esquerda no poder. Estão aí o corporativismo e o aparelhamento. Os elos pessoais que não ensejam a coragem de dizer não aos amigos, falam alto e valem milhões de dólares. Talvez eles fossem as tais “estruturas arcaicas” que parte de minha geração queria mudar.
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Roberto DaMatta é antropólogo, colunista do Estado de S.Paulo