Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia não faz mea culpa, faz peça publicitária

Não é novidade que a imprensa brasileira teve participação efetiva na articulação civil-militar que derrubou o presidente João Goulart. Com a exceção de alguns poucos veículos de comunicação, como o jornal carioca Última Hora e a TV Excelsior, que se colocaram em defesa da ordem democrática e foram posteriormente perseguidos pelo regime militar, todos os principais grupos de mídia deram apoio explícito à intervenção militar.

Passados cinquenta anos do episódio histórico que deu início a uma ditadura que durou mais de 21 anos, os veículos de mídia que apoiaram o golpe têm se visto na obrigação de dar explicações que relativizem sua participação no evento. Valendo-se de desavergonhado contorcionismo retórico, os editoriais dos jornalões têm, em linhas gerais, justificado a opção pelo golpismo como fruto de um período conturbado em que extremismos de todos os lados não teriam permitido um posicionamento moderado.

A leitura de tais editorais deixa claro que esse mea culpa não representa um genuíno arrependimento por parte dos barões da mídia, que mantêm até hoje os mesmos vícios e práticas de 1964; ao contrário, são apenas peças publicitárias que pretendem blindar os veículos de comunicação de possíveis críticas, como se estes tivessem rompido absolutamente com seu passado autoritário.

Uma mentira ajuda a fortalecer a imagem redentora que os grupos de comunicação querem projetar de si mesmos: a ideia de que, depois de terem contribuído para o sequestro da ordem democrática, arrependeram-se e passaram a fazer oposição heroica à ditadura. A prova irrefutável dessa postura redentora e do rompimento do casamento entre mídia e militares, defendem, teria sido a implacável censura de que foram vítimas.

Mentiras que desmoronam à luz dos fatos. O livro Cães de Guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, da historiadora Beatriz Kushnir, é fundamental para compreender as relações entre mídia e censura durante a ditadura civil-militar. Contrariando a posição revisionista dos grupos de comunicação, a obra de Kushnir rememora episódios em que houve colaboracionismo explícito entre militares e veículos de comunicação, trazendo à tona o emblemático exemplo da Folha da Tarde, periódico cuja redação foi dominada por policiais. Além disso, Cães de Guarda esmiúça a relação entre censores e jornalistas, expondo uma convivência por vezes muito menos tensa do que se supõe.

Em entrevista à Carta Maior, Beatriz Kushnir desconstrói o mito de que houve oposição ferrenha entre a censura do regime militar e os grandes grupos de comunicação. Confira.

Os grandes grupos de comunicação no Brasil realmente fizeram um enfrentamento combativo à ditadura militar?

Beatriz Kushnir – A cada vez que escuto uma pergunta como esta, eu penso: se houve tanta resistência, por que a ditadura perdurou 21 anos? Creio ser mais que oportuno, nesse momento de ponderações sobre os 50 anos do Golpe, retomar uma ideia apontada, quando dos 30 anos do AI-5, pelo jornalista Janio de Freitas.

Freitas, na época, publicou na Folha de S. Paulo, uma advertência ainda não cumprida por seus pares: “a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. (…) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói da antiditadura tem dependido só de se passar por tal”. Portanto, traçar os papéis da imprensa no período, é fazer um mergulho profundo nestes acervos. E ao cotejá-los com entrevistas orais, perceber as duas imagens: a que salta das páginas dos jornais, e a construção atual das memórias de si.

Quando se fala em censura aos grandes veículos de imprensa durante a ditadura militar, a publicação de versos de Camões no jornal Estado de S. Paulo e de receitas culinárias no Jornal da Tarde em espaços censurados é uma lembrança recorrente. Esse tipo de atitude incomodava efetivamente o regime militar?

B.K. – O jornalista Oliveiros Ferreira, que por décadas trabalhou no Estadão, me contou, em entrevista, que a Redação recebia ligações indagando que a receita de bolo na primeira página do Jornal da Tarde estava errada. O bolo solava. Ou, como sublinhou Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, os poemas de Camões foram ali uma concessão.

Certamente a censura federal apostava que o leitor não entenderia o porquê destas estratégias. O ponto fundamental da lógica censória é, como brilhantemente descreveu o jornalista Cláudio Abramo, não se deixar capturar pelo equívoco de que “(…) no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior das informações. Mas não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado não é capaz de exercer o controle, e sim a classe dominante, os donos. O Estado influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos e não do Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos jornalistas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo interesse em combater a censura”.

Uma característica do controle da imprensa no regime militar foi a existência da autocensura em diversas redações. Ou seja, o governo transferia a responsabilidade da censura para os próprios administradores dos veículos de comunicação, que deveriam julgar o que é ou não publicável. Qual o significado dessa medida?

B.K. – A autocensura não foi inventada naquele momento. A autocensura é uma prática constante em qualquer empresa de comunicação. Todo jornalista sabe disto. O jornal, a rádio, a TV são exemplos de empresas, negócios, lucros. Vende-se um serviço de utilidade pública: a notícia. Os governos, quando querem calar as vozes de oposição nos meios de comunicação, soltam verbas publicitárias. Como toda empresa tem um dono, nos meios de comunicação só é publicado o que o patrão acha conveniente.

Em seu livro Cães de Guarda, você expõe a trajetória da Folha da Tarde, periódico do grupo Folha que contou com policiais em sua redação e se notabilizou por ocultar e distorcer a morte de militantes políticos. Além de um enfrentamento passivo aos abusos do regime militar, é possível dizer que, em muitas ocasiões, os grandes grupos de mídia foram colaboracionistas?

B.K. – Em vários graus e tonalidades, em momentos diferenciados, as grandes corporações de comunicação apoiaram e pediram o golpe; aproveitaram-se do momento autoritário e repressivo para ampliar seus universos de atuação, diversificando os negócios; no pós-1979, criaram uma visão para si de resistência. A trajetória deste setor, como de diversos outros da sociedade brasileira, demonstra as raízes autoritárias e conservadoras que nos seguram e que estão distantes da imagem idealizada de que somos democratas.

É correto afirmar que, à exceção de divergências pontuais, os grandes veículos de imprensa estavam, em linhas gerais, satisfeitos com a condução política do governo militar e concordavam sobre a necessidade de repressão após o AI-5?

B.K. – Os dirigentes das empresas brasileiras estavam satisfeitos com o milagre econômico e, os que souberam, aproveitaram muitíssimo daquele momento. Certa vez, ouvi uma explicação que o fim da ditadura estava intimamente ligado à crise do milagre. Não creio que precisamos ser tão simplistas. Mas este é um ponto importante a se considerar.

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Caio Hornstein, da Carta Maior