Quase todos os espaços culturais da imprensa escrita foram ocupados por Paulo Coelho no último fim de semana (5/6/4). Quatro páginas na Época, a capas do caderno cultural de O Globo e Folha de S.Paulo, meia página no Estado de S.Paulo. Mas só o rodapé da Folha definiu bem para o leitor o fenômeno Paulo Coelho, 66 anos, 27 livros em 31 anos, 174 milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro, fortuna avaliada em R$ 1 bilhão. “Melhor não gastar dinheiro em obra em que não há literatura”: Marcelo O. Dantas, escritor e diplomata, foi certeiro ao comentar o último romance que mereceu tantas páginas, atenção e virou foco acrítico da imprensa brasileira. “Literatura não há em Adultério. Estamos diante de um produto. Apenas isso. A narrativa é linear e monocórdia. Ao estilo, falta inventividade.”
Como as outras personagens de Coelho – Brida, Pilar, Verônica etc. –, a protagonista de Adultério não chega a existir. E o conselho ao escritor é “poupe seu dinheiro”. Em matéria de adultério temos literatura de verdade e adúlteras inesquecíveis do final do século 19 em Flaubert com Madame Bovary, em Tolstoi com Anna Karenina, em James Joyce com Molly Bloom (Ulysses), no verdadeiro bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, com Capitu e seus olhos dissimulados. Mas o tema vem de muito. Dois séculos antes, Nathaniel Hawthorne, em A Letra Escarlate, já descrevia o drama de Hester Prynne na Salém do século 17.
Não importa como Paulo Coelho consegue emplacar fotos de divulgação que embalam bem seu personagem vestindo capas pretas, fumaças ao fundo, exibindo lanças e flechas, água benta no pedaço, refazendo o Caminho de Santiago na Espanha ou simplesmente meditando. Não importa como consegue grandes passes nada místicos exigindo somas cada vez mais vultosas na troca de editoras. Nem como venceu a disputa pela cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras, derrotando o sociólogo Hélio Jaguaribe. Afinal, a atriz Julia Roberts é sua fã. “Ele nos faz sentir que tudo é possível”, admitiu a atriz. O que conta é saber o que se passa na cabeça dos leitores. Segundo os críticos numa arrasadora matéria de Veja há 16 anos (15/04/1998), o engodo sempre foi claro:
** Bárbara Heliodora: “Não li uma linha dele, ouço dizer que é horrível e acredito, a única coisa que me fascina é sua capacidade de autopromoção.”
** José Paulo Paes: “Tenho ojeriza por literatura esotérica… é o tipo de livro que resolve todos os seus problemas enquanto você está lendo, mas assim que você o fecha, as dificuldades aparecem com ímpeto redobrado.”
** Wilson Martins: “Misticismo barateado, vulgar, ao parafrasear os grandes místicos.”
** Cândido Mendes de Almeida: “Não é um texto, mas um produto de loja de conveniência.”
** Silviano Santiago: “É preciso desmitificar o sucesso que ele faz na França… O público francês é tão medíocre ou pouco sofisticado quanto o grande público de qualquer outro país… Paulo Coelho confirma a existência, hoje em dia, de um gosto globalizado e de um mercado de livros globalizado. Ele é o nosso único representante nesse mercado.”
Reality show
Uma década e meia depois, Paulo Coelho só fez vender mais. Agora ele capta, anônimo, histórias de vida nas redes sociais e, segundo diz, se aproxima de cinco “autoras” para extrair mais material, revelar sua identidade e publicar o livro – é o caso desse Adultério. Antes, em O Aleph, lançado há quatro anos, embarcou no título de um maravilhoso conto de Jorge Luis Borges sem sequer chegar aos pés do mestre argentino.
Dois anos antes de O Aleph, o “mago” lançou A Bruxa de Portobello, que, graças à crítica de Jerônimo Teixeira, na Veja, descobrimos, antes de comprar o livro, a apologia descarada do curandeirismo e da irracionalidade. “Paulo Coelho não é apenas um mau escritor: seu obscurantismo é nocivo. Não se deve perdoá-lo pelo sucesso.”
Sua alquimia literária inclui plágios algumas vezes detectados, como aconteceu com o texto “Cerrando Círculos”, de Sonia Hurtado, publicado no El País em 21/01/2003, enfeitiçado por ele que assinou o idêntico “Encerrando um ciclo” n’O Globo de 22/08/2004.
Ex-vice presidente da Fundação Cacique Cobra Coral, entidade umbandista guiada pela médium Adelari Scritori, ex-executivo da indústria do disco que criou a figura do falso cigano Sidney Magal (fez sucesso com a música “Sandra, Rosa, Madalena”), ex parceiro de Raul Seixas na gravadora CBS e nas músicas que influenciaram o rock brasileiro, ex-adolescente deprimido e cheio de raiva internado três vezes em clínicas de repouso para tratamento psicológico, ex-escritor sem sucesso que saía às ruas para divulgar seus primeiros livros – Arquivos do Inferno (1982) e O Manual Prático do Vampirismo (1985) –, Paulo Coelho construiu seu próprio mito. Surpreendente as pessoas terem acreditado. No mundo inteiro. Como acreditaram em “bruxas” passageiras que em determinadas épocas se dedicaram a ganhar fortunas publicando livros sobre fadas, duendes, estrelas, sonhos, terrenos no céu. Mas Paulo Coelho permaneceu.
Na era do desencontro, a descoberta do catolicismo depois da peregrinação pelo Caminho de Santiago, em 1986, resultou no seu primeiro sucesso um ano depois, O Diário de um Mago. Ali as pessoas começaram a acreditar. Alguns escritores assustaram-se, detiveram-se, como Mario Prata (31/07/2002): “Quem sou eu para duvidar?” Do Diário até Adultério seguiram-se quase três dúzias de livros, quase um por ano de sua, digamos, reality show literature (já que bebida em histórias reais íntimas trocadas nas redes sociais ou chupadas das riquíssimas lendas do mundo oriental) que o transformou num dos brasileiros mais influentes, caçado e engolido tal e qual pela imprensa – um bilionário, um engodo.
******
Norma Couri é jornalista