Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Constituição da internet

Depois de três anos de uma tumultuada tramitação na Câmara dos Deputados, o Marco Civil da Internet foi aprovado e encaminhado ao Senado Federal. A expectativa do governo é de que o texto seja apreciado rapidamente e não sofra alterações. Direitos e deveres de usuários, provedores e do poder público estão em jogo. Um dos artigos que atrasou a votação previa a guarda de dados em data centers sediados no Brasil, mesmo no caso de empresas estrangeiras. O assunto ganhou importância com a revelação da rede de monitoramento de comunicações em escala mundial montada pelos Estados Unidos. Depois de intensa negociação, o ponto foi retirado. O texto assegura que mesmo com os dados armazenados fora país, as leis brasileiras deverão ser respeitadas.

O princípio da neutralidade da rede desagradou às empresas de telecomunicações e também atrasou o andamento do projeto de lei. De acordo com o texto, todos os pacotes de dados devem trafegar na mesma velocidade, sem distinção de conteúdo, destino ou origem. As exceções serão definidas pela Presidência da República em conjunto com a Anatel e o Comitê Gestor da Internet. O Marco Civil estabelece que provedores de conteúdo só serão responsabilizados por postagens de terceiros se não cumprirem ordem judicial que exija a retirada do material. A simples notificação do usuário ao provedor não é suficiente para que uma postagem considerada ofensiva seja removida. O artigo garante a liberdade de expressão, mas pode deixar o usuário vulnerável aos trâmites da Justiça.

O projeto estabelece também regras para a guarda de informações dos usuários. Provedores serão obrigados a armazenar dados do acesso por seis meses e deverão manter o material sob sigilo. As páginas visitadas por usuários, mensagens trocadas ou preferências dos internautas não poderão ser monitoradas, o que evita o marketing dirigido. O texto é considerado pioneiro no mundo e foi elogiado pelo criador da web, Tim Berners-Lee. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (8/4) discutiu os avanços e os pontos polêmicos da chamada Constituição da Internet.

Alberto Dines recebeu no estúdio de Brasília o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do projeto do Marco Civil da Internet na Câmara dos Deputados. Professor de Direito na PUC-Rio, também foi relator, na Comissão de Constituição e Justiça, da Lei das Biografias. No Rio de Janeiro o convidado foi Carlos Affonso Souza, que dirige o Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). O instituto é voltado para pesquisas sobre tecnologia, governança da internet e direitos fundamentais. É professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na PUC-Rio. Em São Paulo, o programa recebeu o jornalista Caio Túlio Costa, que é consultor de mídias digitais. Foi um dos fundadores do UOL, do qual foi diretor geral, e presidente do iG. Foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira e trabalhou na Folha de S.Paulo durante 21 anos.

Liberdade e limite

Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines ressaltou que o caminho para a aprovação do Marco Civil foi longo, mas resultou em um texto avançado: “A tramitação do projeto do deputado Molon levou três anos, mas antes de diagnosticar a nossa velocidade reformista, convém registrar que o Marco Civil recém-aprovado é um dos mais completos. Em outras palavras, as mudanças devem ser obrigatoriamente para melhor. E o melhor só se alcança com o tempo, sobretudo quando se trata de um sistema dinâmico, vivo, global, organicamente inovador e libertário” (ver íntegra abaixo). 

A reportagem exibida pelo programa entrevistou Demi Getschko, conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), que falou sobre as brechas no conceito de neutralidade da rede: “A neutralidade diz que todos os pacotes devem ser aceitos independente da origem e destino. No caso de ataque de negação de serviço, você pode ter que filtrar pacotes enquanto o ataque dura. O que o projeto diz é que o CGI e a Anatel serão ouvidos no caso de ter que se abrir uma exceção casual, e provavelmente temporária, na neutralidade que é garantida no projeto”. Para ele, o Marco Civil prevê formas de proteger a rede e prevenir uma eventual legislação dura. “Eu não gostaria que a internet fosse manietada por uma legislação pesada. O Marco Civil vem como uma espécie de vacina contra possíveis doenças. Não é em si algo que cure alguma coisa, até porque nós não temos problemas na rede, mas podemos vir a ter”, disse o conselheiro do CGI.

O editor executivo do jornal O Globo Pedro Doria lembrou da reação do Poder Executivo quando as implicações do caso Snowden no Brasil foram reveladas. “Logo que essas informações vieram à tona, o governo brasileiro imediatamente ligou um alerta: ‘se estiverem em provedores brasileiros nós teremos como garantir a segurança desses dados, é uma questão de segurança nacional para o Brasil’. O problema é que não funciona assim. Primeiro porque o fato de estar em servidores brasileiros não necessariamente te garante esse tipo de segurança. Imagina: hacker entra em qualquer lugar. Em segundo, e mais importante, porque isso não leva em consideração o custo”, disse o jornalista.

Quem responde?

Doria comentou a polêmica em torno da retirada do conteúdo postado por terceiros: “O barato da internet é justamente essa liberdade de publicação. É o veículo onde tudo quanto é usuário, tudo o que é leitor pode publicar o que quiser para ser lido por todo mundo. Essa liberdade só funciona se ela existe. Agora, se essa liberdade existe e você impõe a quem, no fim das contas, apenas oferece o espaço de publicação a responsabilidade por tudo o que é publicado, você vai acabar quebrando todo mundo. A única maneira de garantir a liberdade de expressão plena na internet é tirar o peso dessa possibilidade de litígio, a não ser, evidentemente, que exista uma ordem judicial. Aí entra um outro dado: a Justiça vai ter que ser mais rápida”.

O jornalista comentou que se a neutralidade da rede fosse quebrada, as empresas de telefonia poderiam cobrar especificamente de acordo com o conteúdo – e o preço para o consumidor aumentaria. “Você na verdade favorece de certa forma os grandes em detrimento de quem queira se lançar. Agora, você prejudica os grandes em produção de conteúdo porque os custos deles também aumentam. É um negocio que no fim das contas só é bom para a empresa telefônica. O que o Marco Civil estabelece é isso: se você vendeu uma quantidade ‘x’ de banda larga, você entrega. E essa banda é neutra, não importa o que está passando ali”, afirmou Doria.

Para o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira, o texto deve ser aprovado sem mudanças importantes: “Nas próximas semanas o texto deve ser aprovado [pelo Senado] na mesma forma como foi aprovado na Câmara tendo em vista o alto amadurecimento, a ampla discussão que já foi feita em relação ao tema. Essa é a nossa expectativa, temos conversado com as lideranças no Senado para que ela se viabilize e que o Brasil seja pioneiro”. Marcelo Bechara, membro do CGI, ponderou que este é o projeto “possível” para o momento político do Brasil e foi aprovado no período pré-eleitoral, por isso, não é possível dissociar o projeto de negociações partidárias.

Referência mundial

No debate ao vivo, Alessandro Molon comentou que antes de chegar ao estúdio esteve no Senado conversando com lideranças dos partidos para tentar que o projeto seja votado antes da Reunião Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet, que será realizada no fim de abril, em São Paulo. “Não é fácil, mas também não é difícil. Eu estou trabalhando com essa meta de aprovar o Marco Civil no Senado do jeito que ele veio da Câmara, e a tempo de poder chegar ao evento e poder influenciar positivamente a internet mundial sobre uma legislação nos moldes do nosso Marco Civil”, disse o deputado.

Molon explicou que alguns pontos complexos do projeto de lei precisaram ser deixados de lado para não emperrar a tramitação. Um deles foi o artigo que disciplina o direito autoral na rede. “Ele joga esse debate para a frente, para a reforma da Lei de Direitos Autorais”, disse o deputado. O adiamento do debate atendeu a um pedido da ministra da Cultura, Marta Suplicy.

O deputado explicou que hoje não há lei no Brasil sobre a remoção de conteúdo postado por terceiros. “Em regra, os provedores de aplicação – como blogs, sites, portais – tendem, por uma questão de segurança, a retirar o conteúdo para evitar que uma futura condenação em um processo judicial leve a prejuízos esse site, rede social ou blog. Para alterar isso é que o Marco Civil diz que só passam a responder pela disponibilização de conteúdo gerado por terceiros, por seus usuários, a partir do momento em que um juiz disser que aquele comentário é ilícito e deve ser removido. Portanto, a regra deixa de ser a possível responsabilização a partir da notificação e passa a ser a partir da decisão de um juiz. Isso dá muito mais liberdade de expressão. Censura prévia é o que a gente tem hoje”, detalhou Molon. Para ele, o projeto levará a uma maior segurança jurídica para os comentários postados.

Notícia protegida

Essa regra não se aplica a conteúdos jornalísticos. Crimes contra a honra ficaram restritos a juizados especiais para proteger as vítimas. “Exigir que esta decisão possa ser dada apenas por um juiz comum, juiz de direito, e não um juiz especial, significa obrigar a vitima a ter que contratar um advogado”, disse Molon. Nesse sentido, quem sofreu o ataque seria punido duplamente. “A grande mudança do Marco Civil é que ele reduz o poder de ameaça da notificação e coloca no lugar de julgador quem deve julgar o que é lícito ou ilícito”, argumentou. Molon acredita que neste ponto o projeto está em sintonia com a garantia dos direitos humanos.

Caio Tulio Costa ponderou que o projeto diferencia o Brasil na comunidade internacional e representa importantes avanços. Para ele, a criação de juizados especiais pode facilitar a censura prévia. “O fato de um juizado não ouvir um advogado de defesa e mandar retirar um determinado conteúdo porque alguém acha que não está de acordo pode ser muito ruim para a imprensa, que pode se ver censurada de maneira injustificada”, avaliou o jornalista. “Ao mesmo tempo, é um paradoxo porque a própria internet veio mostrar que apesar de o jornalista ser um técnico, conseguir realizar o seu trabalho de forma técnica, o seu trabalho se coloca par a par com qualquer opinião, informação, com qualquer comentário que o internauta, qualquer instituição ou empresa coloca na internet. Então, nós temos ainda um paradoxo importante que ao mesmo tempo redefine a figura do jornalista e redefine o próprio poder de mídia que qualquer cidadão tem.” Caio Túlio acredita que deveria haver uma saída jurídica para essa questão ser aperfeiçoada.

Carlos Affonso Souza lembrou que a questão da retirada de conteúdo na rede sempre foi polêmica desde as primeiras consultas públicas a respeito do Marco Civil. A grande reação negativa sobre a necessidade de notificação para a exclusão de uma postagem ofensiva deu origem à redação atual. O objetivo do novo formato, de acordo com o diretor do ITS, é evitar que os provedores se tornem instrumento de censura privada e que não seja possível o contraditório. No entanto, o Marco Civil impõe um desafio para Poder Judiciário, que precisará absorver um grande número de ações e compreender os debates técnicos que envolvem a retirada de conteúdo.

“A internet é um recurso global cuja substância última são os dados que trafegam na rede. Ela trabalha com vários regimes de coleta, armazenamento, utilização de dados. Estamos falando no final das contas de uma legislação sobre dados. É interessante perceber, fácil constatar, que a internet é uma rede global de tráfego de dados, só que embora seja um recurso global, existem leis e as jurisdições nacionais”, chamou a atenção Carlos Affonso de Souza.

 

A aprovação Marco Civil da Internet

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 719, exibido em 8/4/2014 

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

As reformas demoram a serem implantadas? Somos avessos às mudanças? A máquina burocrática trava as inovações e anula os avanços?

A internet nasceu no Brasil em 1995 e, agora, dezenove anos depois, completou a maioridade institucional com a aprovação pelo Congresso da sua Constituição. Fomos rápidos? Somos lentos?

A discussão começou formalmente há cinco anos, com os primeiros estudos e audiências públicas. A tramitação do projeto do deputado Alessando Molon levou três anos, mas antes de diagnosticar a nossa velocidade reformista, convém registrar que o Marco Civil recém-aprovado é um dos mais completos.

Em outras palavras, as mudanças devem ser obrigatoriamente para melhor. E o melhor só se alcança com o tempo, sobretudo quando se trata de um sistema dinâmico, vivo, global, organicamente inovador e libertário.

As formidáveis inovações introduzidas por Johannes Gutenberg no século 15 foram decisivas para a difusão do conhecimento, mas logo neutralizadas pela censura inquisitorial.

Convém não esquecer: o preço da liberdade é a eterna vigilância.

 

A mídia na semana

>> Equívocos também levam à verdade: o erro do IPEA na divulgação da pesquisa sobre a influência das roupas sensuais no estupro de mulheres acabou comprovando o preconceito. Não são 65% dos entrevistados que justificam o ataque às mulheres, são 26%. Caso de perguntar: tanto assim? Numa sociedade democrática e pacífica esta opinião não poderia ultrapassar os dois dígitos. Mesmo estes 26% indicam um potencial de brutalidade inconcebível numa sociedade que se pretende cordial e tolerante. Que venham mais pesquisas deste tipo, o Brasil precisa se conhecer – desde que as cifras sejam corretas.

>> Enfim, a autocrítica. A Folha de S.Paulo reconheceu que errou ao apoiar o golpe de 64. Com um atraso de seis meses em relação ao gesto precursor do Globo e 29 anos depois do fim da ditadura, o jornal fez um mea-culpa minimalista, relativizado, mas fez. Como prova do arrependimento deveria comprometer-se com os princípios do pluralismo e da diversidade. Pelo menos isso.

>> A mídia assanhou-se com as revelações sobre a compra e venda da refinaria de Pasadena pela Petrobras e como sempre acontece acaba fixada no escândalo esquecendo de registrar e valorizar outros fatos. O discurso da presidente Dilma Rousseff reafirmando a necessidade de respeitar os pactos políticos que encerraram a ditadura e garantiram a redemocratização não recebeu o merecido destaque. A inequívoca defesa da Lei da Anistia não foi valorizada pela mídia, mas foi pelos comandos das três forças: dois dias depois, o Ministério da Defesa retribuiu ao comunicar que seriam investigadas sete instalações militares onde se praticou sistematicamente a tortura. Atendia assim o pedido da Comissão da Verdade. É disto que precisamos: a verdade, inteira, sem disfarces ou atenuações.

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Lilia Diniz é jornalista