Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Réquiem para a Rizzoli

Quando da próxima vez flanar pela Rua 57, no lado oeste de Manhattan, passarei defronte o Cafe Classico, mas não verei mais a livraria Rizzoli. Fecharam-na sexta-feira da semana passada, já espreitada por andaimes, pois o centenário prédio de seis andares que a abrigava desde 1985 em breve será demolido para que em seu lugar surja mais uma luxuosa torre envidraçada igual a erguida a poucos metros dali, algum tempo atrás. É mais um golpe da incontrolável gentrificação de Nova York, de conluio com a nunca assaz execrada especulação imobiliária.

Não há vendagem de livros, por si só afetada pela concorrência da Amazon e dos tablets, que consiga cobrir os aluguéis cada vez mais astronômicos cobrados na ilha por qualquer espaço. Nem as grandes redes de livrarias resistiram a essa pressão. Vivia imprecando contra elas 20 anos atrás, amaldiçoando-as pela concorrência que faziam às pequenas e independentes, mas, para surpresa geral, Borders, Waldenbooks, Barnes & Noble capitularam primeiro. Agora sinto saudades de todas elas.

O fenômeno da gentrificação, da compra online e dos livros eletrônicos, é mundial e irreversível. Mesmo Paris andou sofrendo baixas significativas, em particular na “intelectual” Rive Gauche, hoje uma passarela de butiques grifadas a mais na cidade. Há dois anos, lá se foi a mítica Village Voice, na rue Princesse. Graças, porém, ao protecionismo do governo francês às livrarias independentes (incentivos, alívio fiscal, limite ao dumping praticado pela Amazon etc.), várias conseguiram sobreviver à Blitzkrieg fashion, mudando de endereço. La Hune saiu do Blvd. St.-Germain e instalou-se na esquina da Bonaparte com a rue de l’Abbaye, onde ficava uma de minhas favoritas, Le Divan, que felizmente encontrou novo pouso na rue de la Convention. Elas por elas, ao menos isso.

Com seus três andares de mercadorias e charme, a Rizzoli era a livraria mais chique e bonita de Nova York. Virou um marco da cidade, ponto de encontro de celebridades, cenário de filme (Amor à Primeira Vista), mas apenas a jornalista Oriana Fallaci, quem sabe por sua origem italiana, obteve autorização para instalar no andar de cima seu escritório particular.

Seu espaço mais nobre ficava com os coffee table books de arte, arquitetura e fotografia, o filé mignon do mercado editorial. Era a favorita de Paulo Francis. Fomos juntos lá umas duas ou três vezes, ainda no endereço antigo, na 5ª Avenida, num prédio de cinco andares ao lado da Coty, onde ela abriu seus negócios em 1964. Nos primeiros anos, os títulos importados da Itália ficavam expostos logo na entrada e os de língua inglesa, nos fundos, atrás de vasos de flores e gravuras antigas.

Forças sobrenaturais

No começo dos anos 1980, preservacionistas descobriram que o vidro de uma de suas janelas fora desenhado por René Lalique, e o prédio, cobiçado pelos habituais suspeitos, foi tombado provisoriamente. Não por muito tempo. Uma construtora arrumou um jeito de incorporar a fachada da Rizzoli a uma torre de 55 andares, e a livraria transferiu-se para o nº 31 da 57, sua derradeira morada. Da antiga loja, trouxe quatro candelabros, parte do lambri de cerejeira e a moldura de mármore da porta, esculpida a mão. Seu interior barroco não era antigo o suficiente para assegurar seu tombamento definitivo. E a Rizzoli, que em seus áureos tempos chegou a ter 14 filiais país afora, faturar US$ 4,5 milhões ao ano e bancar uma editora, deu ciao à freguesia.

Em seu último dia de funcionamento, celebrado com uma liquidação total do estoque, funcionários e ex-funcionários penduraram na entrada uma foto da velha Penn Station (clássico do estilo Beaux Arts, posto abaixo em 1963), com um lamento da então primeira-dama Jacqueline Kennedy pela morte lenta da cidade, cruelmente esvaziada de suas referências históricas pelos barões da construção civil: “Se nossos filhos não são inspirados pelo passado da cidade, onde encontrarão forças para lutar por seu futuro?”

Fiz por alto uma conta: perdi pelo menos uma dezena de livrarias em Manhattan, nos últimos 20 anos; fora aquelas que não frequentava com a mesma assiduidade e o mesmo prazer. Só em 1995, duas se foram: a Burlington (na Madison) e a Endicott, ambas sufocadas pela megastore Barnes & Noble, como a fictícia Fox & Sons (de Tom Hanks) tentava fazer com a Shop Around the Corner de Meg Ryan, na comédia Mens@agem Para Você.

Nos dois anos seguintes, fiquei órfão de mais três: a Shakespeare & Co. da Broadway, ao lado do Zabar’s, a aconchegante Books & Co. (xodó da Lúcia Guimarães); e a New York Bound, no Rockefeller Center.

Duas paradas obrigatórias da 5ª Avenida – Scribner’s e Doubleday – desapareceram no final da década passada. Sempre antes de entrar na Scribner’s, deleitava-me, da calçada oposta, com os detalhes do belo projeto arquitetônico, em estilo Beaux Arts, de Ernest Flagg, como se estivesse passeando com Sam Waterston em Hannah e Suas Irmãs. A Coliseum (perto do Columbus Circle) sumiu na mesma época, assim como a por vários motivos incomparável Gotham Book Mart (na 47), que, salva por uns tempos pelo magnata dos cosméticos Leonard Lauder, não resistiu às pressões do locador. Que livreiro, por mais bem sucedido que seja, pode arcar com um aluguel mensal de US$ 51 mil?

Se acreditasse em forças sobrenaturais, rezaria todas as noites por aquelas livrarias que ainda não sucumbiram à voracidade imobiliária e à migração dos leitores para os e-books e a venda pela internet. Faria uma prece para a Strand (Broadway com 12), para a St. Marks (na 3ª Avenida), que vi nascer há quase 40 anos, pela McNally Jackson (na Prince, entre Mulberry e Lafayette). E também por aquelas que ainda não conheço – e preciso conhecer antes que seja tarde.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo