Qual o futuro do jornalismo? Faz sentido regulamentar a mídia? Que papel ela exerceu no golpe de 64?
Com mais de cinquenta anos de carreira, Alberto Dines, 82, ocupou cargos de chefia no Jornal do Brasil, na Folha de S. Paulo e no Grupo Abril, entre outros. Escreveu Morte no paraíso, a tragédia de Stefan Zweig (1981), biografia sobre o escritor austríaco que viveu no Brasil.
Dines está à frente do Observatório da Imprensa desde 1996. O projeto, incubado na Unicamp, tem como objetivo fazer uma observação sistemática da cobertura midiática.
O Observatório tem uma plataforma na internet [outra no rádio] e também se transformou em um programa semanal na TV Brasil.
Como enxerga o jornalismo hoje?
Alberto Dines– É importante considerar que no mundo de hoje a grande revolução virá das comunicações, porque esse é o mundo da informação, e da contrainformação também. Agora, em termos de qualidade, eu acho que sobrou pouco. Porque a imprensa se atrelou demais ao mercado. Iria mais longe, acho que o mundo todo virou marqueteiro. A capacidade que o mundo ocidental tinha de confrontar e lançar ideias novas, hoje não tem mais. A prioridade é atender resultados e não o bom jornalismo.
Como define o momento atual?
A.D. – Hoje os sujeitos querem sair da obscuridade imediatamente para os holofotes. E tudo isso foi um sistema criado, então aquela coisa de anos queimando a pestana, estudando, lendo, pensando, hoje não tem mais, você escreve três coisinhas e manda brasa. Isso não quer dizer que a imprensa não atenda às necessidades simplificadas do leitor médio. Mas não tem substância, não tem amarração.
Como visualiza o futuro da mídia impressa?
A.D. – Ela tem futuro, mas a quantidade vai diminuir. Acho que a mídia impressa vai ser a grande referência. Por isso vai ser muito mais restrita, o que sob certo aspecto não é ruim. Ela tende a sedimentar, qualificar, mas vai perder esse caráter massivo que ainda tem hoje.
Quais são os exemplos inspiradores?
A.D. – Tive uma conversa com o Glenn Greenwald que foi muito interessante. Ele saiu do The Guardian, onde era colunista, e foi pro First Look Media, do dono do eBay, bilionário que resolveu financiar projetos de jornalistas independentes, por achar que alguma coisa tinha que mudar na imprensa. Veja bem, não são empresas independentes, são jornalistas independentes. O Glenn não acredita no papel, acha que vai acabar, mas acredita muito na internet, sobretudo nos jornalistas que queiram se levantar contra um poder – pode ser do Estado, até da religião, qualquer tipo de poder. E parece que o negócio está funcionando, eles dão acompanhamento, não interferem em nada. Achei que aí tem um caminho.
Qualquer tipo de poder?
A.D. – Pois é, este caminho tem duas mãos, porque tem perigos também. Por vontade própria você se insurge contra um determinado tipo de poder e pode acabar entrando em caminhos fascistas. Esta é a dinâmica do relativismo. O próprio Snowden começou bem republicano. Ainda sou da era ideológica, ainda tenho um pé atrás com essas mutações muito bruscas. Lembre-se dos discursos básicos de Hitler, ele era um líder operário de direita.
E a TV?
A.D. – Os críticos de TV que existem hoje falam para si mesmos. Não existe uma crítica sobretudo moral, no grande sentido da moralidade, ao que passa na TV. São esses valores que são transmitidos para a sociedade. Todos se dizem surpresos com a violência no Brasil, mas ela goteja da programação da TV.
E a internet?
A.D. – Acho que a internet não consegue te dar essa densidade mas aí sou suspeito.
As faculdades de jornalismo estão cheias de estudantes.
A.D. – Essa gente vai virar assessor de imprensa. Nas federações de jornalismo, 70% das pessoas são assessores. As faculdades não servem. Sou a favor dos cursos profissionalizantes de jornalismo, como o programa de MBA que tinha na ESPM, e que infelizmente foi suspenso este ano.
Com a Copa e as eleições, você acha que os ânimos estão muito exaltados no Brasil?
A.D. – Muito, e no mundo também. No Brasil ainda mais, porque você tem certas fagulhas. Uma foi ano passado. As manifestações trouxeram um pavio que ainda está aceso. Estou prevendo um ano complicado.
Que achou da cobertura das manifestações, em termos midiáticos?
A.D. – Junho pegou todos de surpresa. Ninguém soube avaliar a dimensão deste dado novo no tabuleiro jornalístico e também político.
Que elementos novos vieram à tona?
A.D. – A imprensa não sabe aproveitar as oportunidades, infelizmente. Veja que mesmo durante a censura houve no Brasil um grande jornalismo praticado pela pequena imprensa e alternativa. Mas estas experiências não sedimentaram em nenhum lugar, nem pela linha de sátira e humor crítico que fazia o Pasquim, e nem pelo jornalismo de fôlego que veículos como Opinião e Movimento tinham.
E junho?
A.D. – Continuo dizendo que a Mídia Ninja tinha coisas pra serem aproveitadas que eles próprios não souberam aproveitar. Desapareceram. Querem voltar mas acho que perderam o bonde quando estavam em alta velocidade.
Quais os atributos deste projeto?
A.D. – É essa TV não cosmética, que você vai, faz e nem precisa editar. Uma coisa mais crua e improvisada. A TV no Brasil é muito editada, então perde muito da espontaneidade.
E o que dizer sobre o golpe militar, 50 anos depois?
A.D. – Meu enfoque está na participação da mídia. Tem muitas coisas, até coisas que chamaria entre aspas de positivas mas que no bolo não se destacaram. Por exemplo, em algum momento a imprensa, as classes produtoras e os empresários se uniram a Jango, cerrando fileiras com o legalismo. Jango vinha como vice do JK, que de esquerdista não tinha nada. Não houve choque. Jango se dava bem com os donos de jornal. Não houve um confronto como por exemplo com o Franklin Martins brigando com a mídia, no governo Lula.
E depois?
A.D. – A conspiração ocorreu quando já se tinha decidido que tinha que fazer o golpe. Não sei em que momento exato, mas foi depois que prevaleceu o presidencialismo. Golbery foi vital, inclusive para preparar a imprensa, criando um clima favorável ao golpe na opinião pública.
Os milicos não tinham pensado numa ditadura. São essas coisas trágicas, você começa uma ação dramática sem pensar nas consequências. A intenção era de um golpe cirúrgico para tirar o Jango e pronto. Mas aí as vaidades entraram em campo, esse é o elemento trágico.
E dentro das redações, como era o clima?
A.D. – Você tinha de tudo , inclusive muitos militantes de esquerda. O Fernando Gabeira por exemplo trabalhava comigo, no Jornal do Brasil. Já era um militante, mas não tinha aderido à ação armada.
Havia conflito de consciência?
Não havia. Às vezes o dono de jornal empombava mas a gente embromava ele e ia em frente.
Dentro de uma linha editorial definida.
A.D. – Como na Folha hoje, só que hoje a Folha tem muitos colunistas. A grande diferença é que os jornais de antes não eram tão colunizados. Eram jornais de informação.
Isso é bom?
A.D. – Esse sistema seria bom se tivesse pluralismo. A seleção dos jornais é rigorosamente ideológica. A Folha ainda se permite, tem o Vladimir Safatle que é um homem de esquerda mas quase o único, além do Janio de Freitas.
Que acha da Rachel Sheherazade, e a decisão de proibi-la de fazer comentários no telejornal?
A.D. – Não quero falar sobre esta falsa Sheherazade (que ao contrário da outra, a legítima, não sabe contar histórias, não é do ramo). Se ela entrar no papo acabaremos discutindo as cuecas do Neymar. O que aliás já está acontecendo.
Como você se posiciona politicamente?
A.D. – Meu pai foi sempre um social democrata, que ajudou a construir os fundamentos do Estado de Israel na época de Ben Gurion. Ele participava de um partido lá na Rússia, foi secretário dele no Brasil, delegado do Congresso Sionista.
E você?
A.D. – Eu sigo essa linha. Fiz parte desta juventude sionista, juntamente com companheiros como o Paul Singer.
O que é ser social democrata?
A.D. – O social democrata pretende fazer reformas sociais sem revolução ou meios violentos. De forma progressiva e estudada. Se Jango tivesse ouvido Celso Furtado por exemplo, não teríamos o golpe militar. O Brasil já teve bons quadros, como o Covas ou o Montoro, que vinha da democracia cristã. Você tem assim certas ideias do antigo Partido Verde da Marina que fazem sentido. Esse negócio de que só o crescimento vai nos levar a alguma coisa não está com nada, é preciso ser sustentável.
Você é a favor da regulamentação da mídia?
A.D. – Você não pode deixar de ter. Sobretudo da mídia eletrônica pois se trata de concessões cujos preceitos não estão sendo cumpridos. Para mim, concentração é a palavra-chave. Em outras palavras, propriedade cruzada. É preciso regular justamente a competição. O panorama oligopolista que tem no Brasil é inaceitável.
A regulamentação não pode se transformar em censura?
A.D. – Na semana passada o presidente do STF, Joaquim Barbosa, falou a respeito. Para ele, falta pluralismo e diversidade. Disse ainda que a imprensa é propensa e tem um viés à direita. Reafirmou isso dizendo que a regulamentação não significa controle de conteúdo.
Explique melhor.
A.D. – Em todos os países desenvolvidos você tem a mídia regulamentada. O New York Times por exemplo, sempre sonhou em ter uma TV e nunca conseguiu. Aqui não tem nada, nada, nada. É preciso regular a competição. Quanto ao conteúdo, você vai nele sobretudo no caso das concessões de rádio e TV. Elas deveriam ser examinadas. É preciso verificar se o compromisso com a cultura e a educação estão sendo cumpridos. Ninguém verifica isso.
Então a briga da Cristina Kirchner com o grupo Clarín tem senso, na sua opinião.
A.D. – Tem. A única coisa que não faz sentido é que ela e o marido respeitaram esse jogo até o momento em que o jornal resolveu pisar no calo do governo. Aí começaram a tirar o poder. Tiveram que dividir a empresa, porque estava grande demais.
E na Venezuela?
A.D. – Aquilo lá é uma ditadura e acho que ainda vai correr muito sangue. Maduro tem contra ele também a esquerda esclarecida.
E a mídia venezuelana?
A.D. – O ódio de Chavez tinha justificativa, pois o golpe contra ele em 2002, foi engendrado em um estúdio de TV. E ele, como simplista brutamontes, pensou que, se fizeram uma vez, vão fazer outra.
Como o judaísmo se entrelaça com sua atividade?
A.D. – Sou cada vez mais judeu. Mas judeu nas últimas consequências. E eu acho que judeu é aquele que discute com Deus. Os grandes judeus, como Jesus por exemplo, discutiam com Deus. Então o judeu sob o ponto de vista conceitual é o marginal com coragem de fazer perguntas desconfortáveis.
E Israel?
A.D. – Fui criado em uma casa sionista, mudei de vida por causa do sionismo – parei de estudar e nunca mais voltei, a ideia era ir morar em Israel, no fim dos anos 40. Mas depois, quando Begin foi eleito eu pensei: ‘Não aguento mais’. Lasquei pau na imprensa, a comunidade queria me excomungar, tô brigando com a comunidade até hoje (risos).
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Morris Kachani é jornalista