Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Buendía

Há livros que conduzem o leitor numa corrente impossível de contornar. Não há pausas cabíveis. Em alguns destes livros, tal caráter é tão proeminente que a única forma de virem à vida sem prejuízo à sua organicidade é a do texto contínuo, sem capítulos, pausas, marcas gráficas de separação ou linhas em branco, recursos muitas vezes impostos pelo autor à sua obra para preencher as lacunas da criação ou esconder as fraquezas de seu encadeamento. Em “Grande sertão: veredas”, maior monumento literário jamais publicado, o poder da narração de Riobaldo cresce à medida que a massa textual toma conta de todos os sentidos do leitor, até a completa apropriação: quem persistir (pois há aqueles que, por temor, distração ou analfabetismo funcional, fracassam e agarram-se à margem do rio) logo viverá a experiência de ser parte de uma esfera em que texto, estória, léxico, criação, transfiguração, imagem, intuição, papel, livro, autor, narrador, unem-se num corpo que tangencia a tão sonhada “coisa em si”. “Cem anos de solidão” é um desses livros. Até contém divisão em capítulos e encadeamento lógico de parágrafos, mas a experiência de sua leitura dissolve tais entraves como se fossem meros traços fáticos, ilusões de ótica, obstáculos que lançam o viajante no necessário labirinto de uma continuidade cujos ciclos situam a percepção num presente eterno, em que os fatos giram no modo de carrossel mas desmentem a existência de um tempo linear em que todos desejamos nos apoiar. A sensação após a leitura pode ser esta, de que apenas um parágrafo transcorreu, de que a vida, com suas inesgotáveis cores e com todas as suas infinitas variações, está parada no vórtice do eterno retorno. Nenhum momento é igual ao outro, o melhor lugar do mundo é aqui e agora, que seja, desde que posta a evidência de que nada há antes nem depois, e que toda experiência, por mais novo que seja o seu aspecto, é a expressão reiterada da solidão de cada ser na luta pela eternização do prazer. A beleza e a essencialidade de livros como “Cem anos”, a “mágica” de que tanto se fala, está menos num arcabouço estilístico em que se tenta sempre reduzir uma obra (para explicar e aniquilar a dúvida) ou na naturalização do sobrenatural e do exótico peculiar de autores como García Márquez, e mais na capacidade de extrair novas belezas da linguagem, puramente da linguagem, e fazer o leitor pensar que se trata da história, da trama, dos personagens ou de alguma fórmula de gênero. A genialidade de autores como o que ora nos deixa está na capacidade de encantar pelo fluxo, pelo truque, pela armadilha da escrita, e extrair o gozo da constatação de que nada mais há ali do que a invenção que se faz através das palavras, e não dos fatos, dos desfechos. É quando o autor se faz filósofo sem precisar fazer um romance filosófico. Quando não precisa explicar que ficção se mistura com realidade (tema de 80% das mesas e dos debates literários da atualidade e prova de como o leitor anda carente de reflexão crítica). Tal caráter, que une estilos os mais variados e liberta aquele que contempla da necessidade de classificar, está presente também em obras como “A montanha mágica” (que não tem nada a ver com realismo mágico): ali, Thomas Mann consegue dar um nó na noção de tempo e prolongar sua versão da angústia civilizacional ao mesmo tempo em que retrata o espírito de sua época e a alma alemã e explora um ponto de vista em que a ignorância tática situa-se como saber em meio à polarização intelectual (o tuberculoso Hans Castorp é um grande personagem não por sua projeção figurativa, sua personalidade ou seu arco psicológico, mas pelo vazio que cria através de uma perplexidade tão inocente que soa a cinismo mas que está só refundando, involuntariamente, o ceticismo formulativo de Sócrates. O autor alemão faz tudo isso dando ao leitor convencional a impressão (e a satisfação) de estar lendo um tijolão sofisticado de 700 páginas (ótimo para férias em navios) com uma grande estória passada num sanatório cercado de paisagens alpinas, com querelas médicas e uma galeria de personagens exóticos. Mesmo esse leitor, contudo, corre o risco de, a certa altura, ser tragado pela vertigem existencial e, num capítulo como “A noite de Valpurgis”, constatar, por força da síntese poética de Mann, que a distância entre amor e morte pode ser bruscamente reduzida a zero sem cerimônia e que horror e prazer são sinônimos quando a primazia do caos se torna uma evidência banal. “A montanha mágica”, aliás, é estruturada em capítulos precedidos de números romanos, com títulos e subtítulos, e alterna trechos longuíssimos com outros quase telegráficos. Mas, como em “Grande sertão” e “Cem anos”, tudo se perde na neve, no sol e na solidão. Reler (ou, para quem não leu, ir à luta)estas três obras que suplantam as classificações e os rótulos de sempre — mas têm em comum a mágica que possibilita materializar a utopia da invenção — é uma homenagem e tanto a Gabo.

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Arnaldo Bloch, do Globo