Uma colombiana me disse, com palavras que chacoalhavam a alma, mas sem perder o acento sereno semelhante ao de quem avisa que vai à padaria em busca da fornada quentinha:
“Gabo está con Alzheimer”.
Surpreso, reagi com a atitude atávica de repórter. Isto é, perguntei:
“Como sabes?”.
Éramos três ali, conversando em castelhano numa casa colada à Harvard University, na cidadezinha norte-americana de Cambridge. A outra conterrânea de Gabriel García Márquez confidenciou como ela e a colega haviam descoberto que a memória do escritor definhava.
Corria maio de 2007, e participávamos da conferência anual da ONO, as iniciais em inglês da Organização dos Ombudsmans de Notícias. Pode-se pronunciar a agourenta sigla como “ou-nou!”, o que em português se entende como “ai-não!”.
Somente dali a cinco anos e dois meses um irmão de García Márquez revelaria que o gigante da literatura padecia de demência senil.
Foi o tempo que eu tive para publicar um furo de impacto mundial, sobre as brumas do esquecimento que encobriam a matéria-prima, as lembranças, do garoto de Aracataca.
Pois eu nunca noticiei o segredo. Em gesto que não lustra o currículo de repórter algum, decidi calar, em vez de contar.
O que teria pensado sobre o meu silêncio um apaixonado pelo jornalismo como Gabriel García Márquez?
Sommelier de ocasião
Daquelas jornadas na Nieman Foundation for Journalism at Harvard eu me recordo dos prognósticos clarividentes de que em breve o jornalismo gravitaria na internet e da ansiedade de algumas conferencistas com o mata-mata do programa American Idol. Elas divergiam sobre o talento dos cantores neófitos e repartiam sua torcida entre os concorrentes.
O título do encontro alardeava uma transição no jornalismo, mas o editor do Guardian argumentou que o mais apropriado seria revolução. Logo um ator propositalmente parecido com ele, cabelos desalinhados como desenhos de moléculas de DNA, apareceria na redação do jornal londrino, numa cena de filme de Jason Bourne, o matador desmemoriado. Na sequência seguinte, um sniper a soldo da CIA fuzila um repórter.
Até hoje, quando o papo com os convidados empaca, as crianças aqui de casa me instam a narrar mais uma vez o episódio estrelado por um dos 45 representantes dos leitores, oriundos de 13 países, que viajaram a Harvard. Mesmo quando não arranca risadas, por deficiência do imitador, a reconstituição desinibe o convescote.
Numa noite de maio de 2007, éramos cinco os comensais em um restaurante moderninho no porto de Boston, perto de Cambridge: as duas colombianas, eu, outro ombudsman e sua mulher.
A garçonete sugeriu uma degustação de três vinhos, todos californianos, meio copo de cada um. Não demorou e o gajo jornalista anunciou, com pompa, que compartilharia uma lição recém-aprendida num curso ministrado por enólogo.
Afetando habilidade de malabarista, ele segurou o copo de vinho, ergueu-o no ar pela haste, girou o líquido, esculpiu um redemoinho e ensinou:
“Não é assim que se faz”.
Pousou o copo na mesa, revolveu-o mais rápido, procurando o ar libertador de aromas sequestrados, e tragou um gole do tinto encorpado:
“É assim”.
Eis a epifania que o fanfarrão pronunciou feito um Newton a pontificar sobre a gravidade ou um mágico a segredar o truque: com o copo apoiado à mesa, e não balançado no ar, há menos risco de o vinho respingar.
Nosso sommelier de ocasião não brincava, falava sério.
Se a comida estava boa? Não lembro.
Tentação de noticiar
Também não sei se foi antes da inusitada aula de prova de vinho ou depois que, em um intervalo da conferência, ouvi a novidade:
“Gabo está con Alzheimer”.
As jornalistas trabalhavam em emissoras de televisão da Colômbia. Havia pouco elas tinham testemunhado que a memória de García Márquez se enevoava como uma antiga imagem embaçada da pré-história da TV.
Velhas amigas de Gabo, assustaram-se numa recepção em que ele não as reconheceu. Não é que o octogenário tenha esquecido como elas se chamavam, o que não é incomum – Ruy Castro apela aos seus leitores para carregarem um papelzinho com o nome dentro dos livros, nas filas de autógrafos, pois é possível que lhe falte até o nome de íntimos.
García Márquez não as identificou, como se o apresentassem a dois recém-nascidos, e elas supuseram que os indícios de demência equivaliam à doença do alemão (no futuro, não haveria diagnóstico de Alzheimer, e sim de demência senil).
O Prêmio Nobel de Literatura lançara em 2004 seu romance Memória de minhas putas tristes, com raros rasgos de inspiração, mas ainda um autêntico García Márquez. Seria o livro derradeiro.
O primeiro volume da trilogia autobiográfica Viver para contar saíra dois anos antes, e eu lembro que o autor recapitulou sua estreia nos prazeres da carne. Aguardei a continuação que acabaria por não chegar.
Em 2007, eu exercia a função de ouvidor de jornal, e nessa condição compareci à conferência nos Estados Unidos. Dedicado à critica de mídia e a intermediar a relação entre leitores e redação, não escrevia reportagens.
Ciente do tesouro que guardava, conservei-o com cuidado e voltei a pensar nele em abril do ano seguinte, quando meu mandato de ombudsman (ou editor público, como prefere o New York Times) expirou e eu reassumi o posto de repórter.
As fontes eram confiáveis. Eu conhecia chapas de Gabo no cinema e na literatura, bastaria consultá-los e confirmar. No começo da década, em dobradinha com Sérgio Rangel, eu produzira um estrondo jornalístico com a investigação exclusiva sobre como Pelé e sócios faturaram centenas de milhares de dólares em nome da seção argentina do Unicef.
O evento beneficente não saiu do papel, e a empresa Pelé Sports & Marketing Inc. embolsou o dinheiro. Deparávamo-nos com os ecos de nossos furos até em portais noticiosos da Ásia e do Leste Europeu cujos idiomas e alfabetos nos pareciam hieróglifos.
Com a doença de Gabo, o barulho seria ainda maior. Legitimidade jornalística não faltava, dada a evidente relevância pública das informações sobre o escriba soberbo e best-seller consagrado.
Emplacar o furo de reportagem foi uma tentação, mas titubeei.
Argentino sedutor
Agora que García Márquez partiu, pululam aspirantes a Forrest Gump contando que privaram com ele. Ainda aparecerá um paspalhão envaidecido por ter soltado um pum no elevador onde cruzou com o falecido.
Salvo traição da memória, dessas que volta e meia me atropelam, jamais estive com Gabo. O despropósito do tratamento pelo apelido decorre do abuso de leitor devotado e da admiração reverente de companheiro de jornalismo.
Não, a memória não apagaria um encontro assim. Não estive com García Márquez nem em sonho nem no elevador. No entanto, é mais ajuizado obedecer à matreirice do pinguço que não se compromete: não é que não tenha acontecido; eu não me lembro de que tenha ocorrido.
Além do deleite de suas histórias, devo a García Márquez a chance de aprendizado numa luminosa oficina de jornalismo narrativo. Por cinco dias, conduziu-a o jornalista e escritor Tomás Eloy Martínez (1934-2010), na Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano.
A fundação foi criada por García Márquez em Cartagena de Indias, município da Colômbia caribenha cuja antiga “cidade amuralhada” é um lugar inesquecível. E onde o jovem Gabo, pouco mais que um foca, gastara sola de sapato coletando notícias para o diário El Universal.
No sobrado erguido no século XVIII ou XVII, eu e onze colegas latino-americanos nos embevecemos com a sabedoria de Tomás Eloy. Submeti-lhe uma reportagem que viria a integrar meu livro Viagem ao país do futebol”, parceria com o repórter-fotográfico Antônio Gaudério.
O argentino cobriu-me de boa vontade, elogiou a prosa do único aluno de língua materna portuguesa, porém advertiu: isto não é jornalismo narrativo. Por esse crivo, nenhum dos seus aplicados aprendizes passou.
Frustrei-me – besteira; qual a diferença? – com sua resposta à minha curiosidade sobre o que era real em sua obra-prima Santa Evita, espécie de romance histórico.
“Nada”, esclareceu o autor, estampando seu sorriso sedutor.
Para jogar charme sobre duas jornalistas de Buenos Aires, Tomás Eloy me desafiou para um duelo cultural entre nossas nações. Não refuguei, ele lançou Maradona, eu contra-ataquei com Pelé (temi que o Zico não colasse), meu antagonista hesitou, mas cedeu.
No quesito literatura, diante de Cortázar, Borges e companhia, assimilei a sova. Quando o autor de La novela de Perón falou em doce de leite, apelei, e ele e as compatriotas perderam a esportiva ao escutarem o que tomaram como infâmia:
“Os uruguaios são os melhores”.
Com o trio ofendido com minha alegada predileção por um “dulce de leche” fabricado no país de Obdulio, Ghiggia e Galeano, a contenda terminou ali. Sem vencedor, mas com as colegas ainda mais encantadas com o encantador Tomás Eloy.
Sem cansar, nosso “maestro” evocou macetes da escrita de seu amigo Gabo. Uma das dicas enfatiza o valor transcendental da abertura da narrativa como isca para capturar a atenção do leitor.
Mal nosso professor mencionou o romance Cem anos de solidão, os colombianos presentes recitaram de memória as palavras iniciais, num coro improvisado e arrepiante:
“Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo. Macondo era entonces…”.
O ar-condicionado do casarão barrava bravamente o mormaço sufocante da rua, como os muros de Cartagena haviam contido os invasores marítimos de outrora. O Brasil se engolfava, naquela quadra de 1998, na campanha do segundo turno da eleição para governadores. Ainda bem que eu estava longe.
Não sei com certeza como a semana na escola fundada e animada por García Márquez me influenciou. Cinco anos mais tarde, pedi as contas no jornal para mergulhar em um livro de não ficção.
Obsessivo, escrevi e reescrevi a abertura. A frase inicial acabou impressa assim: “Carlos Marighella viu a zeladora do prédio onde morava caminhando em sua direção e pensou que, outra vez, conseguira ludibriar a polícia”.
“Mais uma vez” seria mais eloquente do que “outra vez”, mas havia um “mais” na sentença seguinte, e em português os preceitos de elegância recomendam restringir a repetição de palavras. Será que acertei?
Só uma eternidade depois de ter redigido o início do livro é que me dei conta de que digitei um lide, o princípio da notícia em sua estrutura clássica.
Este era outro mantra de Gabo: ao contar uma história, tanto faz se ela é imaginada ou não ficção; a carpintaria narrativa é a mesma.
Mais um: quase sempre o advérbio de modo é excessivo (e não “claramente” excessivo). Cortá-lo, assim compreendi, é como amputar um terceiro braço.
Já com o belíssimo adjetivo “diáfano” García Márquez era – algum senão? – useiro e vezeiro. Nunca houve, e aí transparece o gene caribenho, tantas águas diáfanas na literatura universal.
Espelho, o problema
Antes da conclusão da biografia, em 2012, eu passaria nova temporada no jornal, do segundo semestre de 2006 a 20 de janeiro de 2010, Dia de São Sebastião, feriado no Rio.
Em 2008, eu matutava sobre o que fazer com a doença de García Márquez.
Constitui falácia a ideia de que tudo o que um jornalista apura deva ser publicado. Noutros tempos, sopraram-me que um veterano desportista, pagando do próprio bolso, decolava nas excursões ao exterior acompanhado da regra três – era verdade. Atletas mais jovens despendiam os horários de folga praticando sem discrição o esporte do adultério. A mulher de um ministro havia sido amante de um candidato a presidente.
Não veiculei sequer uma linha sobre as bolinagens extraconjugais porque, embora houvesse inegável interesse do público, sedento de fuxicos a respeito da vida alheia, inexistia interesse público. Trocando em miúdos, as escapadelas de craques e pernas-de-pau configuravam assunto da esfera privada, sem consequências à coletividade. Sua divulgação era ilegítima.
Seria diferente se um jogador da seleção ou um senador fosse preso por pedofilia ou flagrado cometendo esse crime pelo qual todos os cidadãos são ou deveriam ser passíveis de punição. Nessa hipótese, a notícia se revestiria de interesse público.
Eu abrira mão, em 2004, de um furo de envergadura histórica. Vasculhando papéis empoeirados, aventura temerária para um alérgico crônico feito eu, dei com um laudo de necropsia e uma foto de cadáver, embaralhados no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Os amarelados documentos da polícia política do passado descreviam em pormenores as fraturas resultantes da sessão de tortura que matou o operário Virgílio Gomes da Silva e exibiam seu crânio deformado, com um lado afundado, mais baixo do que o outro.
Eu colhera provas irrefutáveis de que o guerrilheiro Virgílio, nome de guerra “Jonas”, tinha sido detido, torturado, assassinado e sumido.
Líder do sequestro do embaixador dos EUA, comandante militar da maior organização armada de combate à ditadura e primeiro “desaparecido político” do regime parido em 1964, Virgílio havia sido trucidado na sede da Operação Bandeirante, em setembro de 1969. Houvera testemunhas, mas os agentes do Estado negavam que o militante estivesse sob sua custódia. Minha descoberta era o xeque-mate.
A garimpagem bem-sucedida no arquivo do Dops, além de contribuir para elucidar um célebre episódio de violação dos direitos humanos, fomentaria a promoção da biografia que eu preparava e da qual “Jonas” figurava como personagem destacado.
O problema foi o espelho. Sim, aquele onde nos miramos de manhã e, depois que as partículas de vapor escorrem, em seguida aos banhos. Eu ignorava quantos anos o ponto final do livro demoraria, mas tinha noção de que faltavam alguns (seriam mais oito).
E se, nesse meio tempo, a viúva de Virgílio viesse a falecer? Dona Ilda e os quatro filhos nunca desistiram de buscar o corpo do guerrilheiro, na esperança de lhe oferecer um enterro digno. Eu dispunha de informações que poderiam ser úteis à batalha da família.
Não precisei me olhar de novo no espelho, pois já sabia o que a cabeça e o coração mandavam. Entreguei a papelada aos Silva, eles convocaram uma entrevista para lhe dar publicidade e perseveraram na procura pelos restos mortais de Virgílio, ainda hoje não encontrados.
Junto com a oficina de jornalismo narrativo, a fundação de García Márquez me proporcionara outra, todos os dias ao entardecer, sobre ética.
Não seria antiético adiar para meu livro a denúncia sobre as circunstâncias da morte de Virgílio Gomes da Silva. Mas eu seria injusto com dona Ilda, ao menos assim me sentiria. Não me perdoaria se lhe ocultasse pistas valiosas para o seu sonho de se despedir do homem de sua vida.
A coisa certa?
Contar ao planeta que a memória de García Márquez fraquejava também não feriria a ética. Ele era figura pública e com atividade pública. Até a desinteligência de ordem passional com o escritor Mario Vargas Llosa havia ocupado as primeiras páginas, com direito a fotografia do colombiano, ares marotos, mostrando um olho roxo (será que Gabo só se insinuou à mulher do peruano tão genial quanto ele ou logrou êxito ao cortejá-la?).
Para mim, contudo, o caso do narrador que vivia de sua memória e a perdia, assim como eu não consigo me lembrar de uma só piada, não se assemelhava ao boxeur cuja força se esvai ou ao ator pornô nocauteado antes da hora agá.
Por mais consistência que eu tente conferir à minha retórica, o motivo determinante foi a minha irrevogável gratidão a Gabriel García Márquez, sobretudo pela saga dos solitários Buendía.
Contrapus à legitimidade jornalística meus sentimentos e idiossincrasias, o que não enobrece a trajetória de um repórter.
Para os repórteres que merecem a designação, o furo tangencia o fetiche, a razão de levantar todos os dias e ir à luta. Por desconfiar de que Gabo queria preservar na intimidade o segredo sobre a memória esfumada, eu recusei o furo, sonegando-o ao jornal e aos leitores.
Em 2012, quando Jaime, o irmão de Gabo, desvendou a demência senil desenvolvida “havia anos”, o principal colaborador do escritor na Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano contestou a informação.
Como eu sabia que o depoimento do irmão tinha lastro nos fatos, interpretei a declaração do outro Jaime, o jornalista Jaime Abello Banfi, diretor da fundação, como generosa fidelidade ao desejo do amigo García Márquez de omitir a doença (não tenho como assegurar se foi isso mesmo).
Essa seria a vontade de Gabo. Quando li o tuíte de Jaime Abello, achei que eu tinha feito a coisa certa.
Não certa para o jornalismo, mas para a minha consciência.
Talvez um dia, entre uma história vivida e outra reminiscência contada, eu venha a me arrepender.
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Mário Magalhães é jornalista