O Brasil repentinamente tornou-se o principal protagonista de uma das mais ásperas batalhas diplomáticas mundiais, mas também a mais importante do ano: a governança da internet. Os jornais franceses deram um amplo espaço a essa batalha atípica que, por um momento, ofusca as grandes manobras de Vladimir Putin na Ucrânia ou as ofensivas dos jihadistas islamistas na Síria, no Iêmen ou na África Central.
Analistas franceses abordam os antecedentes dessa conferência em São Paulo. Falaram da cólera e da indignação de Dilma Rousseff quando soube, com as revelações de Edward Snowden, que a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA havia violado o segredo das conversas da presidente e de seus principais colaboradores. Na ocasião, a França não entendeu bem o furor de Dilma.
Alguns jornais de Paris consideraram seu protesto efeito de uma susceptibilidade exagerada. Outros explicaram que as relações entre o gigante da América do Norte e o gigante da América do Sul foram sempre dominadas pela emoção, pela desconfiança e susceptibilidade. Em Paris, ao se defrontarem com as indelicadezas da NSA, as autoridades permaneceram calmas.
Mas, logo depois, a chanceler alemã Angela Merkel também teve uma reação bastante violenta. Ora, Merkel é bem conhecida dos franceses, uma pessoa de grande sangue frio. Se o comportamento da NSA deixou-a escandalizada foi porque a indiscrição passou do limite do aceitável. E por ocasião da visita de François Hollande, em dezembro de 2013, a França aceitou ser coorganizadora do evento em São Paulo.
Brilhante ofensiva
O objetivo do evento é a governança da internet. Trata-se de conseguir uma mudança radical das ações dos organismos que administram a internet, ou seja, os endereços, nomes de domínios, protocolos. Todos os procedimentos que, até agora, por razões bem evidentes, razões históricas, estão sob a tutela dos EUA.
O alvo imediato é o Icann (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), que detém o controle dos nomes de domínios (Corn, Net, Fr, etc). Esperava-se uma resistência feroz dos americanos. Mas, em março, os EUA abandonaram o controle do Icann. Surpresa. Na França, a decisão foi interpretada como uma retirada da parte dos americanos. Os EUA, abalados pelas revelações de Snowden, não teriam mais capital moral que os tornassem dignos de garantir as liberdades da web.
Os especialistas franceses vão mais longe. Consideram que o enorme deslize revelado pelo escândalo Snowden teve como consequência abrir uma guerra entre o poder federal dos Estados Unidos e os grandes grupos americanos da internet, estes últimos muito inquietos com a perspectiva de perder a confiança dos utilizadores estrangeiros. Uma frase de Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, foi interpretada nesse sentido: “A governança americana deve ser a defensora da internet, e não uma ameaça.” Nos EUA, os republicanos entraram na briga. Furiosamente hostis à internacionalização do Icann, eles já consideram que essa é uma nova batalha perdida pelo enfraquecido Barack Obama.
Assim, parece que o Brasil provocou um confronto diplomático cujas conclusões reformularão completamente as relações entre EUA e o restante do mundo. Em Paris, o entendimento é de que o Brasil conduziu brilhantemente sua ofensiva e o país deixará sua marca. “Não faremos a revolução em dois dias, mas o Brasil está em boa posição para fazer avançar a reforma da governança”, diz Mathieu Weil, diretor da Associação Francesa para a Nomeação de Domínios de Internet em Cooperação, que participa do evento em São Paulo.
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Gilles Lapouge é correspondente do Estado de S.Paulo em Paris