Um alarme de carro toca há horas na rua. Às vezes estou tão distraída com meus pensamentos barulhentos que nem reparo que esse maldito alarme continua a tocar. Outras vezes são os freios e os motores dos ônibus que param na esquina que encobrem a buzina infernal. Quando volta o silêncio, parece que o alarme toca mais alto, desesperado. Para que serve um alarme se o dono do carro não é capaz de ouvir? Para acordar os bebês? Azucrinar os idosos ou os doentes, que estão em casa? Ou ele acha que vai assustar o ladrão?
O pulso acelerado do alarme retarda o meu raciocínio. Fico obsessiva. Não consigo pensar em mais nada. Chame o ladrão, alarme, para que ele lhe corte os fios de uma vez por todas e acabe agora com a minha agonia.
Já sei: vou jogar. Não vou me jogar da janela. Vou jogar. Vou esquecer que tenho prazo para entregar o trabalho e vou jogar. Vou jogar meu jogo favorito, ou vou jogar qualquer coisa, desde que não precise me mexer. Desde que não tenha de sair de casa, trocar essa roupa, me olhar no espelho, encarar outra pessoa. Vou jogar qualquer coisa, desde que não precise me afastar desta tela iluminada. Meu palco, iluminado. Vou jogar qualquer coisa e vou ganhar. Vou ganhar nem que seja na próxima rodada. Vou ganhar nem que seja contra o computador. Vou ganhar, mesmo contra um jogador mais fraco. Vou ganhar, nem que tenha de programar esse jogo numa configuração mais fácil. Vou ganhar, nem que seja na base da trapaça. Vou ganhar e vou me sentir vitoriosa. Ou vou trollar alguém. Vou xingar todo o mundo num fórum de jogos na internet. Vou desacatar quem ainda joga o jogo que eu já abandonei ou não ganhei. Vou zoar, usando algum apelido qualquer, travestido de um avatar do jogo que eu jogo. Vou fazer um robô para trollar. Vou observar as reações das pessoas às minhas provocações. Vou perseguir quem ousar responder. Depois vou voltar a jogar, vou ganhar e vou relaxar. Vou jogar de novo. Vou subir no ranking. Vou desafiar uns outros. Vou desafiar o campeão. Vou ganhar e vou ganhar de novo, até me tornar a campeã, a rainha, a imperadora, a dona do universo virtual, a dona do mundo do meu quarteirão, do meu quintal, do meu nicho, da minha baia, a rainha da sucata do meu computador, lerdo, é por causa dele que eu perco.
Porcaria de internet
A culpa é dele, do alarme, que voltou a tocar. Não é possível. Esse cara não tem mãe? Não tem multa para quem deixa o alarme do carro estourado? Não vai parar nunca mais? Não vai acabar a bateria? Não vai chegar a polícia? Ninguém vai fazer nada? Ninguém está ouvindo? Será que não é o alarme de um carro? Será de uma casa?
Cadê o fone de ouvido? Vou começar de novo. Pronto. Já comecei. E comecei bem. Gênio. Eu sou um gênio. Espera só que você vai ver. Porra. Pooorrra! Poooorrrraa! Não é possível. A culpa é da conexão. Porcaria de internet. A culpa é da telefônica. Da net. A culpa é da Dilma. A culpa é do Bill Gates. Do Steve Jobs. Do telefone que tocou. Da campainha. A culpa é sua. Óbvio. Não estou com fome nenhuma, não adianta insistir. Não sei que horas são. Nem quero saber. Olha você no relógio. Para de me atrapalhar. Você não entende? Não preciso comer. Não preciso dormir. Não preciso de nada. Eu só preciso ganhar.
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Marion Strecker, da Folha de S.Paulo