Na manhã de terça-feira (22/04), os corredores do Senado ficaram movimentados. Era a corrida contra o tempo para aprovar em três comissões o texto do Marco Civil da Internet, de modo que ele pudesse ir a Plenário ainda na tarde do mesmo dia.
Na Comissão de Ciência e Tecnologia, o texto passou com duas emendas de redação que traziam ajustes pontuais. Na Comissão de Constituição e Justiça, o relator, Vital do Rêgo (PMBD-PB), acatou outras duas emendas. Uma delas mudava o Artigo 15 definindo que apenas delegados de polícia e o Ministério Público – e não mais “autoridades judiciárias e administrativas”, como estava na redação original – poderiam requisitar as informações de acesso do usuário que, pelo projeto, deveriam ser guardadas por até seis meses. Não havia acordo do texto com o Ministério da Justiça e a alteração, mesmo anunciada como de redação, mexia no mérito do projeto e poderia abrir um flanco para questionamentos futuros da lei no Poder Judiciário.
Na Comissão de Meio Ambiente, o senador Luiz Henrique (PMDB-SC) desistiu de apresentar relatório em protesto por aquilo que classificou como “atropelo”. E a reunião para apreciar a matéria foi cancelada. Mas isso não atrapalhou o processo, uma vez que o prazo para a manifestação das comissões já havia se encerrado e a inexistência do parecer da CMA não prejudicava a tramitação.
Enquanto isso, organizações da sociedade civil integrantes da Articulação Marco Civil Já, entre elas o Intervozes, percorriam as comissões e os gabinetes para defender a aprovação do MCI naquele dia. Frente aos questionamentos de alguns senadores sobre a pressa, representantes das organizações reafirmavam que o Marco Civil era um projeto da sociedade e que o texto expressava um acordo construído a duras penas. A mudança do texto geraria o retorno para a Câmara, o que poderia enterrar o projeto ou fazê-lo suscetível novamente ao lobby do empresariado das telecomunicações. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do texto na Câmara, que já se encontrava em São Paulo para os eventos sobre internet que ocorrem esta semana na cidade, pegou às pressas um avião para Brasília.
No plenário, a base governista fez uma disputa regimental com o PSDB e o DEM, únicas bancadas resistentes à votação da proposta. Senadores governistas tentaram um acordo com tucanos e democratas, mas havia resistência. Apesar de concordar com o mérito no geral, os dois partidos argumentavam que a pressa para garantir a aprovação a tempo de sancionar o Marco no evento NetMundial colocava o Senado a serviço do Executivo. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) rebateu a tese, afirmando que a agenda apertada tinha como objetivo apresentar o projeto como modelo e pautar a agenda internacional na linha de afirmação dos direitos dos usuários.
Sem acordo, coube ao governo exercer sua maioria. Quando a aprovação já estava consolidada, senadores de diversos partidos subiram à tribuna para ratificar o caráter histórico daquele momento e como o Brasil se tornava referência mundial ao aprovar uma das mais avançadas legislações para a área da Internet. Ativistas que acompanhavam a discussão na Tribuna de Honra conseguiram, com o apoio do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), entrar no plenário. A sessão foi suspensa para que os representantes das organizações pudessem estirar a mesma faixa que marcou a sessão de aprovação na Câmara. A presença e a contribuição da sociedade foram reconhecidas como elemento fundamental dessa conquista da população brasileira.
Em São Paulo, a votação do Marco Civil no Senado foi acompanhada por um telão montado no Arena NetMundial, evento paralelo ao NetMundial, organizado pela Secretaria Geral da Presidência da República e pelo Comitê Gestor da Internet. No momento do anúncio, mais de 100 participantes vibraram com a aprovação da lei. Os últimos meses de intensa mobilização da sociedade civil, nas redes, nas ruas e no Congresso Nacional, foram retratados em vídeos, fotos e memes.
#Veta15Dilma
Ao mesmo tempo em que a articulação dos cidadãos em torno da defesa do Marco Civil foi destacada como fundamental para sua aprovação, todos lembraram que a luta continuaria com o pedido de veto da Presidenta Dilma ao artigo 15 do texto. Polêmico desde que foi incluído no relatório ainda em tramitação na Câmara, por força do lobby da Polícia Federal e de parte do Ministério Público, o artigo obriga todas as empresas a guardarem os dados de aplicação dos usuários por seis meses, para futuras investigações. Mesmo que o acesso a esses dados só possa se dar mediante decisão judicial, o texto viola a privacidade do cidadão e o princípio da presunção de inocência, ao tratar todos os internautas, indiscriminadamente, como supostos criminosos. Vale lembrar que esta brecha para a violação da privacidade tem impactos significativos no exercício da liberdade de expressão na rede. Afinal, se sei que meus dados de navegação serão guardados por seis meses por terceiros, provavelmente agirei de forma diferente da que agiria.
Negociado com seis partidos políticos para garantir a aprovação do texto na Câmara – e depois no Senado – o artigo acabou se transformando na principal insatisfação da sociedade civil, que tanto celebrou a aprovação do Marco Civil. Uma campanha contra a vigilância presente no texto foi então lançada logo após a aprovação da lei no Parlamento. E se prorrogou até a cerimônia de abertura do Net Mundial na manhã desta quinta feira.
Em um encontro privado com a Presidenta Dilma, representantes da Articulação Marco Civil Já reforçaram o pedido de veto, protocolado oficialmente em seu gabinete antes mesmo da aprovação no Congresso. A Presidenta lembrou do acordo firmado na Câmara e, minutos depois, subiu ao palco do NetMundial e sancionou o Marco Civil sem alterações. Diante dela e de uma plateia de mais de 700 participantes, de cerca de 80 países, ativistas brasileiros abriram uma faixa pedindo o veto ao artigo 15. Do outro lado do auditório, ativistas franceses, indianos, ingleses e africanos lembraram que “todos somos vítimas da vigilância” na rede.
Marco Civil aprovado e sancionado, os próximos passos desta jornada ainda são muitos. Falta, por exemplo, regulamentar a nova lei em pelo menos dois aspectos: as exceções à neutralidade de rede e o próprio artigo 15. As organizações da sociedade civil esperam, com isso, limitar a coleta massiva de dados dos usuários para um número mais restrito de empresas. Um caminho seria aplicar a guarda obrigatória de dados somente a empresas que sejam responsáveis por páginas ou serviços que, num dado período, tenham sido alvo de um grande número de denúncias de atividade suspeita ou ilegal. A continuação do debate sobre regulação da internet também se dará na reforma da lei de direitos autorais e na lei de proteção a dados pessoais. Nenhuma das duas teve sua tramitação iniciada no Parlamento.
No âmbito internacional, o Marco Civil da Internet deve ainda impulsionar, em diferentes países, legislações baseadas nos seus três pilares, todos destacados pela Presidenta Dilma em seu discurso no NetMundial, logo após a sanção do texto: neutralidade de rede, liberdade de expressão e privacidade.
Fica claro, assim, que o processo de construção e aprovação do Marco Civil, que durou ao todo mais de sete anos, não termina agora. Entre disputas e aprovação no Senado, campanha relâmpago pelo veto de um artigo e sanção do texto na abertura do NetMundial, ele agora entra pra história como uma lei modelo para a regulação da internet em todo o mundo. Mas novos desafios estão colocados sobre a mesa. Novos mais surgirão. A síntese que fica desta conquista, no entanto, ao menos para a sociedade civil, é a de que se organizar para garantir seus direitos pode, sim, fazer toda a diferença.
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Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e integrantes do Conselho Diretor do Intervozes.