A Copa de 1958 foi do rádio. Os locutores esportivos já tinham aportuguesado uma porção de palavras do inglês, mas ainda havia quem preferisse pagar algum tributo ao idioma de Shakespeare. Afinal passara-se pouco mais de meio século desde que Charles Miller trouxera o foot-ball para o Brasil, em 1894.
O ‘futebol’, dito também ‘futibol’, já era o esporte preferido do povo brasileiro e, assim, no português coloquial, shoot passou a ‘chute’ e ‘chúti’; goal keeper foi reduzido a ‘quíper’ e, em seguida, substituído por ‘goleiro’, forma que então se consolidou. O inconsciente nos traiu na formação desta palavra: designamos um goleiro cheio de gols.
Team virou ‘time’. Sport e club foram aportuguesados para ‘esporte’ e ‘clube’, mas as palavras inglesas ainda hoje estão presentes na designação de vários clubes, como na do recente campeão mundial de futebol, o Sport Club Internacional.
‘Falta’ aparecera primeiro como ‘fau’, aportuguesamento de foul, mas referee, depois ‘juiz’ e ‘árbitro’, variantes mais aceitas, marcaria o tranco de qualquer modo, sem poder recorrer a nenhum cartão, pois, amarelo ou vermelho, o cartão somente se transformaria em recurso punitivo muitas copas depois, quando charge mudou para ‘entrada dura’ ou mesmo ‘tranco’, ‘cacetada’, ‘paulada’, ‘traulitada’, ‘sarrafada’ etc.
Triping tornou-se a popular ‘rasteira’. O ajudante do juiz, atuando com uma pequena bandeira na mão, era conhecido como linesman e mudou sua designação para ‘bandeirinha’. (Hoje, nossa linda bandeirinha Ana Paula, que já posou pelada para a revista Playboy, seria lineswoman). Scratch virou ‘escrete’. Captain, este foi fácil, já tínhamos o posto no exército, virou ‘capitão’.
Esculhambar, subverter
Os locutores esportivos, quando o Brasil conquistou enfim sua primeira Copa do Mundo, em 1958, depois de ter celebrado antecipada e indevidamente a Copa de 1950, que afinal perdemos na ‘tragédia do Maracanã’, já tinham alcançado um feito notável. Como as antigas babás negras das sinhazinhas e sinhozinhos, que haviam tirado o osso das palavras do rude português trazido de além-mar, amaciando-o para os brasileiros, fizeram coisa semelhante com as naturais rudezas do inglês, com seus sons estranhos, à melodia da língua portuguesa e amalgamaram uma nova língua para as transmissões esportivas. Às vezes tropeçaram na língua, é verdade, com palavras ainda mais estranhas – de que é exemplo ‘bisonho’, para caracterizar um lance sem pé nem cabeça.
Entre seus imaginosos recursos, houve lugar até para ‘dérbi’, trazido do turfe para designar o que depois seria consolidado como ‘clássico’. ‘Dérbi’ entrou para o português no século 20, mais de 200 anos depois de Lord Derby dar seu nome a uma corrida de cavalos, na Inglaterra, em 1780.
Training virou facilmente ‘treino’, mas kick-off precisou ser adaptado para ‘pontapé’. Corner foi usado até os anos de 1980, mas hoje, embora ainda seja invocado, perde de goleada para ‘escanteio’, o mesmo valendo para ‘impedimento’, que substituiu off-side. O ‘centro-avante’ substituiu o center-forward. O center-half cedeu seu lugar ao ‘meio-campista’ que veste a camisa 5, posição hoje mais conhecida como ‘volante’.
Às vezes o inglês esconde outras origens, como em melée, originalmente designando ‘mistura’ no francês, mas que veio a indicar ‘confusão’, ‘briga’, no inglês. Daí dizer-se que alguma força ‘melou’ um jogo ou um resultado. O verbo ‘melar’, nascido deste melée tornou-se sinônimo de esculhambar, subverter, mudar, por meios ilícitos, alguma coisa.
Ingressos caros
Na contramão da extraordinária conquista de nossos heróicos locutores esportivos, os de hoje esforçam-se por retroceder e já chegaram a tentar impor play offs para as semifinais e finais.
Por que eram heróicos? Por muitos motivos, mas também por este exemplo: certa vez o famoso locutor esportivo Fiori Gliglioti transmitiu pela Bandeirantes um jogo realizado em Lourenço Marques (atual Maputo, capital de Moçambique), na África, sem que visse uma única jogada, pois estava no Brasil e ouvia a transmissão portuguesa pelo rádio! Frações de segundos depois que o locutor esportivo narrava o lance, em português de Portugal, ele narrava o mesmo lance em português do Brasil.
A verdade é que onde o povo entra, seja o carnaval, a música, a dança ou o futebol, o sucesso é garantido.
Infelizmente, o povo brasileiro não tem encontrado entradas para a literatura. E o preço dos ingressos, nos estádios, comparado ao que o povo ganha, está jogando todos para diante da televisão apenas, em evidente empobrecimento de nosso futebol ‘glória do desporto nacional’.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor e vice-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e autor, entre outros, dos romances Avante, Soldados: Para Trás (1992), Os Guerreiros do Campo (2000) e Goethe e Barrabás (2008)