A parolagem da mídia e das autoridades sobre a morte do tenente-coronel reformado Paulo Malhães nos remete diretamente aos tempos da ditadura.
E não apenas porque a vítima era um notório vilão, torturador confesso, violador assumido dos direitos humanos, figura de proa na máquina da repressão militar e importante testemunha na Comissão Nacional da Verdade.
A repentina volta ao passado dá-se em parte porque reencontramos os mesmos subterfúgios, manhas e evasivas dos tempos em que a linha-dura fazia o que bem entendia e o resto do país se contentava com as migalhas dos releases policiais.
Compreende-se o cuidado do governo, mas ninguém está clamando pela revisão ou revogação da Lei da Anistia. O que chama a atenção e assusta é a cobertura morna, burocrática, de um caso que as autoridades (inclusive federais) não poderiam tratar com tanta displicência e a mídia com tanta ligeireza.
Compreende-se que família e amigos desejassem apressar as providências funerárias. Mas o lado pessoal não pode sobrepor-se aos aspectos legais, morais e humanitários. A morte de um brutamonte não encerra os efeitos das brutalidades. Só comprova que a brutalização está viva. Ativa.
Página aberta
As dúvidas e suspeitas que envolvem o personagem e a sua eliminação não admitem tamanha desatenção e rapidez. A divulgação da guia de sepultamento atendia ao desejo da família de enterrar o corpo, mas acabou criando um clima de “caso encerrado” com a menção a um edema pulmonar, isquemia do miocárdio e miocardia-hipertrófica. Acontece que esta última era pré-existente, as duas primeiras ocorrências podem ter sido causadas por um estresse muito grande (asfixia, por exemplo).
Na segunda-feira (28/4), no quinto dia depois do assassinato, a curiosidade dos jornalões parecia plenamente satisfeita. Ninguém cobrou o laudo local e cadavérico, nem a lerdeza da Polícia Civil do Rio a quem o caso foi encaminhado.
E exceção vai por conta do valente O Dia, do Rio de Janeiro, que em reportagem de Juliana Dal Piva, publicou detalhada entrevista com a viúva Cristina Malhães (a última mulher do militar) onde revela importantes dados sobre a ação por ela testemunhada: o casal foi rendido à luz do dia por três bandidos que estavam com as armas da própria coleção de Malhães. Durante 10 horas ficou presa enquanto os criminosos faziam o serviço. Depois foi ameaçada de morte (ver “Paulo Malhães foi rendido com suas armas”).
A hipótese inicial de latrocínio só foi descartada na tarde da segunda-feira quando se revelou que afinal a Polícia Federal entrara na investigação e examinaria os computadores do militar. Certamente porque o governo estava incomodado com a cobrança da Comissão de Direitos Humanos da ONU anunciada horas antes.
É possível que a partir de agora a mídia abandone o faz-de-conta informativo dos tempos da autocensura. E lembre-se dos laudos de legistas como o famigerado Harry Shibata que sequer examinava os cadáveres das vítimas da tortura.
A ditadura não é uma página virada, nem se encerra com as rememorações sobre os seus primeiros 50 anos.
Leia também
Sobre vulcões e seus roncos – A.D.