Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os homens de dedos nervosos

Os jornais de terça-feira (29/4) reproduzem e amplificam o noticiário sobre a violência, que ocupou boa parte dos telejornais na noite anterior. Os pontos de difusão do tema são múltiplos, e incluem o emblemático episódio ocorrido em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, onde dois agentes públicos descontrolados realizaram mais de trinta disparos no interior do 2º Distrito Policial, causando a morte do jovem médico Ricardo Assanome e ferimentos em duas outras pessoas.

Também há destaque para as investigações sobre o caso da aposentada Arlinda Bezerra de Assis, de 72 anos, atingida durante tiroteio entre policiais e supostos traficantes no Complexo do Alemão, no Rio.

Ainda no Rio, prossegue o noticiário sobre o assassinato do dançarino Douglas Rafael, que se apresentava costumeiramente num programa de variedades da TV Globo. Conhecido como DG, ele foi encontrado caído na escadaria de uma creche e a imprensa continua repetindo as versões apresentadas seguidamente por fontes da polícia fluminense.

O conjunto desse noticiário tem ainda como referência principal o pedreiro Amarildo Dias de Souza, que foi dado como desaparecido no dia 14 de julho de 2013, após ser detido por policiais lotados na Unidade de Polícia Pacificadora na favela da Rocinha, no Rio. Na onda dos protestos que varriam as grandes cidades do país desde o mês anterior, Amarildo acabou simbolizando o cidadão comum, de baixa renda, que comumente preenche as estatísticas de vítimas da violência policial.

O médico Ricardo Assanome desloca o problema para outro patamar, e sua morte instala o terror no seio da classe média tradicional. Por uma dessas mazelas que carregamos, como sociedade construída na desigualdade, até então a enorme lista de pessoas assassinadas por agentes do Estado parecia não sensibilizar a parcela da população tida como privilegiada.

Amarildo foi um ponto fora da curva, que só ganhou notoriedade porque, na ocasião de sua morte, milhares de pessoas, principalmente jovens, estavam mobilizadas por outras questões no complexo de problemas urbanos.

A notícia como espetáculo

O assassinato ao mesmo tempo brutal e estúpido de Assanome joga no colo das classes sociais acima da linha média um dado tenebroso: ninguém está a salvo do sistema de segurança estruturado para preservar o patrimônio em detrimento da vida humana.

O episódio ocorrido no 2º Distrito de Santo André revela que a força policial trabalha sob condições tão estressantes que seus integrantes se tornam incapazes de agir com um mínimo de eficiência em condições críticas. Os homens de dedos nervosos podem apontar para qualquer um e, quando o mal deixa os guetos, a sociedade fica histérica.

Observe-se que a tragédia de Santo André foi produzida pelo barulho de uma motocicleta ao tombar no chão, associado a gritos e movimentação de pessoas em fuga. Não haviam ocorrido tiros ou explosões, nada que indicasse a iminência de um atentado de criminosos contra a delegacia. A hipótese do ataque, inadmissível em qualquer circunstância, era tão real para o agente que iniciou o tiroteio que ele não aventou outra possibilidade, como um acidente de trânsito ou uma briga na rua.

Quatro dias antes desse episódio, um motorista da Polícia Civil, completamente descontrolado, quase havia provocado outra desgraça na região da Avenida Paulista, ao manobrar com imprudência uma viatura para tentar controlar uma multidão de adolescentes histéricas que queriam ver a cantora e atriz Demi Lovato, hospedada no Hotel Intercontinental da Alameda Santos. Despreparado e pronto a sacar sua arma, ele fez manobras bruscas, fazendo com que muitas jovens atravessassem a rua no meio dos carros que passavam.

Nos comentários que se somam ao material jornalístico publicado na internet percebe-se que a sucessão de fatos chocantes como os relatados nos últimos dias ganha colorações partidárias, o que induz a autoridade a trocar a verdade pela versão mais conveniente.

Sabe-se que o noticiário sobre a violência pode produzir uma predisposição a mais violência. Por isso, sempre se recomendou que a imprensa tratasse desse tema com a complexidade que ele carrega. Essa é uma reflexão que os jornalistas e os leitores precisam fazer, diante da tentação de usar esse tema no conjunto do noticiário espetaculoso do cotidiano.